Fragmentos da vida cotidiana By Raimundo Neto / Share 0 Tweet Aprecio a cálida desmesura avermelhada e a felicidade calculada de luzes coloridas que toma conta das pessoas, e dos seus saldos bancários, no Natal, e, principalmente nos dias que o antecedem. O Natal tornou-se aquela bola cremosa de sorvete colorido vencendo a bravura do calor do dia-a-dia no topo de uma imponente sorveteria, mas, que por ser plástica e artifical, sacia apenas os olhos, mas a sede, a fome, a garganta seca de uma delícia real continua: tudo permanece intacto. Tudo tão espontâneo como o natural piscar estelar da iluminação vendida na época. A ideia de que Papai Noel, e sua adiposa camada de enriquecimento digno, carrega um saco sem fundo e escraviza animais dóceis me faz pensar em como a ociosidade ativa da cultura é capaz de repetir certos constructos como verdades únicas. Estamos falando de uma massificação que não deixa de ser um processo cultural, e se é cultura precisou de anos e repetições para adquirir tal consistência e força. Quem se perguntaria a utilidade do Natal? Pecado. E então, os culpados necessitariam comprar mais e torturar a santa paz de seus bolsos com parcelas que liquidariam de vez a sua paciência e bem-estar. No Natal é comemorada uma data relevante para o calendário cristão, certo? Acho que sim. Mas o mercado tratou logo de “monetarizar” a importância da data e multiplicar por mil, ou seriam milhões? E as pessoas, as mesmas que constroem e são construídas pelos aparentemente inquestionáveis processos culturais, trataram em vender afetos e embrulhá-los em caixas vistosas e papéis de presente que sorriem abençoados em seu reluzir financeiro. Famílias que se reúnem uma única vez ao ano para abraços de perdão. Não poderia ser outro dia? Não, não. Tem que ser no Natal. Tem que ser? Onde está escrita essa regra que torna sua consciência tão assustada a ponto de experimentar pequenos apocalipses internos? Minha família nunca foi muito fã de reuniões e ceias natalinas, por motivo de forças inconscientes, guerras particulares, e um instinto antigo e natural para arremessar grandes pedaços de peru defumado na ofensa alheia. Depois que assisti ao filme O Clã das Adagas Voadoras, amadureci uma reflexão que só hoje faz sentido: Minha família foi precursora. Os movimentos eram finos e delicados, porque qualquer passo em falso, qualquer escorregão nas palavras e não-ditos acumulados durante todo o ano colocaria tudo por água abaixo, digo, vinho abaixo. Eu torcia para que o Programa da Xuxa terminasse logo e ela parasse de gemer alucinada naquela sua experiência infanto-sexual que só ela sabia amenizar, para que o cansado Papai Noel descesse logo pela chaminé – e aí eu imaginava que na casa do meu avô, que não tinha chaminé, possuía uma larga e limpa com elevador e tudo, para que ele pousasse confortável na nossa sala – e colocasse logo o presente que eu tanto desejava. Papai Noel foi falhando com o passar dos anos. Aos nove anos, ele trouxe um carro barulhento em que ele próprio dirigia de forma enervada, como se tivesse usado algum alucinógeno violento para dissolver a responsabilidade de ter que atender tantos pedidos. Pensei “Que velhinho filho-da-mãe (Perdão Nossa Senhora. Ele é seu filho?, me questionava com um medo catastrófico de ser um menino mau) narcisista. Devia ter trocado as cartas. Aos onze anos, pela última vez, ele me deu um presente adulto, mas que inseriu em mim uma paixão: uma câmera fotográfica. Todos os meus amigos formavam grupos felizes para compartilhar seus jogos divertidos, seus bonecos que falavam e davam cambalhotas, trens cantores, robôs que guerreavam com inimigos fantasiosos sem sair do lugar, e eu parado fotografando sozinho aquilo tudo. No ano seguinte, ele parou de descer pela nossa chaminé imaginária. E mamãe disse que eu precisava acordar. E eu descobri os vídeos da Xuxa na internet anos depois. O Natal, o nascimento de Jesus, a fé, o amor, não têm absolutamente nada relacionado a dinheiro. Surge em mim uma alergia devastadora, que corrói minha paciência, quando vejo alguém rezando a Deus para que envie a grande benção de receber o prêmio da Mega Sena. Se Deus não inventou o dinheiro e a relação afetiva que criamos com a moeda, por que Ele se comprometeria em encher os bolsos e a vaidade dos filhos com concentração de renda? Vitrines iluminadas com detalhes néon avassaladores, grandes anúncios vendendo espíritos novos e renovados para o ano próximo, presentes engraçados que riem encorajados pela fantasia de uma outra realidade que não é apenas paralela, mas a nossa própria, e que não cabe mais em nosso peito, muito menos no bolso. O limite do seu cartão não lhe permite comprar o futuro, outra vida, ou amor. Natal é tempo de escolhas e mudanças. O que pode ser iniciado a qualquer momento. E isso não está à venda.