Sob(re estupro) o Domínio do Medo*

Estupro das Filhas de Leucipo por Peter Paul Rubens

Pintura: Estupro das Filhas de Leucipo por Peter Paul Rubens

 

 

(Trato de impressões. Sem cortes profundos nem muitos temperos. Responsabilidade adoça a vida. Enxergo, sim, a falta de cores em algumas práticas violentas, e deixo-me levar pelas impressões. É com empatia, imaginação, compreensão e bom senso que escrevo. Impossível evitar ter pretensão nas margens de tudo; não estou cego. Se soar pretensioso peço desculpas. Mas tento ver por dentro. Com muito esforço. Permito-me uma viagem dolorosa… Não deixa de ser uma verdade tudo aquilo que se imagina).


Não sei se uma mulher, um homem ou uma criança – e os deixo assim indefinidos – conseguiriam ser os mesmos depois de uma agressão sexual. No entanto, não deveria espantar a ninguém se todas as flores, quaisquer flores, ao redor e as mais próximas dessas vítimas, começassem a perder o visco, ou regredir; semente ou broto sem coragem voltando ao começo, quando nada ainda era início; quando ainda não havia culpa.

As músicas tornam-se abafadas, se conseguem ser ouvidas. O sangue caminha em refluxo, borbulhando, movido à tristeza e desencanto. Foram mil braços, os agressores. Um desejo corrupto, sujo, a comprometer o desejo do outro. As lágrimas percorrem o corpo para purificar, limpar pequenos pedaços; uma gota a cada ameaça. A alegria enferruja em poucos minutos, enquanto durar o ato; um desastre de poucos minutos.

O silêncio é uma ferida. A dor é uma tempestade de fogo, por dentro; existem chances de que tudo – a mesma dor, as lembranças, as palavras secas, as mãos pesadas, o monstro corruptor – seja superado. Como? Quase improvável que um vazio que surge nas vítimas de tal violência como fruto da perversão, ou mais que isso, seja preenchido; é esconder sujeira grossa e cruel embaixo dos tapetes.
 
A impressão que tenho é que acontece um eclipse a cada meio-dia, que todas as estrelas desistem de enfeitar e mergulham nas profundezas do rio mais próximo.

Os conteúdos foram arrancados, e o corpo precisará de novos significados. Impossível apoiar-se apenas em amenidades para seguir adiante. Engole-se um punhado de areia grossa a cada tentativa.

O olhar alheio, e o próprio, são aterrorizantes. Carrega o poder de parar o tempo passado, uma cena, a mesma que desperta ódio, culpa. As lembranças renovam as marcas, engrumecem o sangue, o pouco que resta. Os sorrisos escondem-se nos dedos dos pés, ou nas partes que não foram violadas.
 
O corpo arma-se de estresse após o trauma.A capacidade de amar e perdoar foi arrastada para fora, à força, com golpes de perversidade. Sexo volta a ser tabu, fonte de indecência. A esclerótica escurece de culpa e ressentimento. É vingança o que faz os ossos estalarem. Os velhos conteúdos misturam-se ao caos. Vão e voltam. Vão e voltam. Vão e voltam. Entram e saem.

O corpo, que adquire placas, couraças para cada medo, estremece e faz surgir um terremoto a cada recordação.
 
Qualquer alegria é induzida; as satisfações são plásticas; as cores são emprestadas. Sob a pele, no fundo, se existia alma, inicia-se o nascimento de um Outro, de pura dor e esperança, agarrado na incerteza de que todos, mais do que eles, superem, e que os monstros capazes de destruir uma existência, descubram, livres de si, que o inferno aceita encomendas e orações de inocentes.


* Reflexões a partir da película: Sob o Domínio do Medo (Straw Dogs, Reino Unido/EUA, 1971), filme de Sam Peckinpah.
 
 
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Raimundo Neto