Negociando com os Mortos – parte 2

Escrever é um ato que surge sempre de uma necessidade. Ninguém escreve por simplesmente escrever, como esquecer um objeto em um lugar por mero descuido. É impossível escrever sem saber que se está escrevendo, não é inconsciente, ainda que o que esteja sendo escrito possa ser em parte ou totalmente inconsciente. Mas por que os escritores escrevem?

Em “Negociando com os Mortos” (Editora Rocco, 256 páginas, tradução de Lia Wyler), Margaret Atwood compilou uma lista de respostas a esta pergunta, e como prometido, ei-la com curiosas, estranhas, sinceras e às vezes divertidas razões:

Registrar o mundo como ele é. Gravar o passado antes que o esqueçam. Desenterrar o passado porque caiu no esquecimento. Satisfazer o meu desejo de vingança. Por saber que precisava continuar escrevendo ou morreria. Porque escrever é correr riscos, e somente correndo-os sabemos que estamos vivos. Produzir ordem a partir do caos. Encantar e instruir. Satisfazer a mim mesmo. Expressar-me. Expressar-me de uma forma bela. Criar a obra de arte perfeita. Premiar os virtuosos e punir os culpados; ou – a defesa do marquês de Sade usada pelos partidários da ironia – vice-versa. Refletir a natureza. Refletir o leitor. Pintar um retrato da sociedade e seus males. Expressar a vida das massas ainda inexpressa. Nomear o ainda inominado. Defender o espírito, a integridade e a honra humanas. Zombar da morte. Ganhar dinheiro e comprar calçados para os meus filhos. Ganhar dinheiro e poder escarnecer os que no passado me escarneceram. Mostrar quem sou a esses filhos da mãe. Porque criar é humano. Porque criar é divino. Porque odiava a ideia de ter um emprego. Dizer uma palavra nova. Fazer algo novo. Gerar uma conscientização nacional ou uma consciência nacional. Para justificar os meus fracassos na escola. Justificar a minha visão de mim mesmo e da minha vida, porque não poderia ser “escritor” se não escrevesse alguma coisa. Parecer mais interessante do que realmente era. Atrair o amor de uma bela mulher. Atrair o amor de qualquer mulher. Atrair o amor de um belo homem. Corrigir as imperfeições da minha infância infeliz. Contrariar meus pais. Narrar uma história fascinante. Divertir e agradar o leitor. Divertir e agradar a mim mesmo. Passar o tempo, mesmo que ele fosse passar de qualquer maneira. Grafomania. Logorreia compulsiva. Fui impelido a escrever por uma força além do meu controle. Porque fui possuído. Porque um anjo ditou para mim. Porque caí nos braços da Musa. Porque fui engravidado pela Musa e precisava dar à luz um livro (um interessante travestimento em que condescendiam os escritores do século XX). Para servir à Arte. Servir ao Inconsciente Coletivo. Servir à História. Justifificar os desígnios de Deus para o homem. Dar vazão aos atos antissociais pelos quais teria sido castigado na vida real. Dominar um ofício e poder gerar textos (uma definição recente). Subverter a ordem estabelecida. Demonstrar que algo está certo. Experimentar novas formas de percepção. Criar um boudoir recreativo em que o leitor possa entrar e se divertir (traduzido de um jornal tcheco). Porque a história se apoderou de mim e não quis me largar. Para procurar compreender o leitor e a mim próprio. Enfrentar minha depressão. Para os meus filhos. Ganhar uma fama que sobrevivesse à morte. Defender um grupo minoritário ou uma classe oprimida. Falar em nome daqueles que não podem fazê-lo. Denunciar erros e atrocidades espantosos. Registrar a época em que vivi. Dar testemunho dos acontecimentos medonhos a que sobrevivi. Falar pelos mortos. Celebrar a vida em toda a sua complexidade. Louvar o universo. Admitir a possibilidade de esperança e redenção. Retribuir um pouco do que me foi dado.

Todas as respostas são mais interessantes quando isoladas; algumas tornaram-se clichê com o passar das décadas e da insistente busca pelos motivos do fazer artístico, outras são debochadas e outras ainda parecem desentranhar emoções de âmagos perturbados. Percebe-se uma grande vontade de expressão, um desejo de mostrar algo mais para os outros do que para si; vontade de cura, coma se a escrita fosse um remédio sem bula, que ou se toma com risco de morrer ou se toma por vício; vontade de atrair um outro, que é na verdade a parte mútila do eu, e o leitor se torna um pedaço que completa o escritor despedaçado por sua própria obra; vontade de mexer com a sociedade, com o ambiente, com as pessoas, ou seja, de fazer uma diferença prática a partir da teoria; necessidade de apagar e ao mesmo tempo traduzir erros e medos porque a escrita é um buraco negro que a tudo engole com seu campo gravitacional equivalente à capacidade de criação humana. A última resposta, “retribuir um pouco do que me foi dado”, talvez seja inconsciente entre todos os escritores, pois a partir de leituras interessantes ou não, de experiências memoráveis ou não, a escrita acontece como uma troca, nunca nasce do nada, sempre do acúmulo de informações e impressões, da tal “bagagem”.

Quais respostas, queridos leitores-escritores desta coluna, vocês acharam mais interessantes? E quais as que respondem por vocês? Acho que a melhor resposta à pergunta “por que você escreve”, sobetudo pela sinceridade, é a de Samuel Beckett, que declarou que escrever era só o que ele sabia fazer. Simples assim.

Então, Margaret, no insucesso de sua busca por motivos, perguntou aos escritores o que sentiam, e novamente pergunto: o que você sente ao escrever? Desta vez não darei um exemplar do livro “Negociando com os Mortos”, apenas quero saber de quem aqui passa o que sente – e, por que não?, continuar a mesma discussão sobre o ato de escrever e suas questões vicinais.

Perguntei na primeira parte desta série de artigos a razão pela qual as pessoas escrevem e não seria nenhum exagero da minha parte (nem uma justificativa para escapar dos tomates e dos ovos podres) revelar que todas levariam um exemplar do livro. Como não tenho 17 exemplares, o único que me foi oferecido atenciosamente pela Editora Rocco vai para Paola Benevides, que respondeu: Eu escrevo por impura vaidade. Todas as respostas têm seu valor criativo, original, umas mais belas, metafóricas, outras mais diretas e concisas, mas escrever por uma vaidade que não seja pura ultrapassa seu próprio sentido, pois Paola, pelo que entendi, escreve pela antivaidade, uma vaidade contaminada pelos destroços da vida, pelo sublime ao contrário, uma vaidade que não é verdadeira porque se assim o fosse, sua arte não seria honesta, mas um  reflexo de um ego. Quem escreve por pura vaidade está com a corda no pescoço e um abismo logo abaixo do banquinho onde os pés tremulam. Quem escreve com o ego, não escreve: vive do autoengodo de seu narcisismo.

Por que eu escrevo? Escrevo porque não quero fazer sentido, mas ser sentido.

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Alex Sens