Literofagia By Alex Sens / Share 0 Tweet É preciso sentir algo enquanto a escrita é ação? Ou o sentimento que desprende do escrever é mera reação? Não importam as perguntas, mas dois fatos: 1) escrever produz sentimentos, eles estão ali enquanto as mãos tentam ser mais rápidas do que as ideias, e 2) o ato tem sempre alguma relação com o emocional, seja ela boa ou má, então podemos pensar que ambas são necessárias. O mundo literário seria enjoativo e inabitável caso a relação do escritor com a escrita fosse meramente técnica, mecânica e/ou financeira. Escreve-se por uma necessidade íntima que vem acompanhada de um sentir: obscuro, iluminado, estreito ou tão largo quanto suas possibilidades. Margaret Atwood perguntou a alguns escritores o que eles sentiam ao escrever: Um respondeu que era como entrar em um labirinto, sem saber que monstro poderia ali encontrar; outro, que era como atravessar um túnel às apalpadelas; uma terceira que era como estar em uma caverna – via a luz do dia pela abertura, mas ela própria estava no escuro. Um quarto me disse que era como estar submerso em água, em um lago, em um oceano. Um quinto, que era como estar em um quarto totalmente escuro; tateando: precisava rearrumar a mobília no escuro, e quando estivesse tudo em ordem, a luz reacenderia. Um sexto, que era como vadear um rio fundo, ao alvorecer ou ao anoitecer; um sétimo, que era como estar em um quarto vazio porém repleto de palavras não enunciadas, onde há uma espécie de sussurro; um oitavo, que era como se sentar em um teatro vazio antes de começar a peça ou o filme, aguardando a entrada dos personagens. É constante este sentimento de descortinamento, de iluminar o escuro, de revelar o que está encoberto. O que está encoberto? O não-escrito, o que ainda sofre em gestação e dói para deixar a placenta da qual o escritor se alimenta. Virginia Woolf (minha escritora preferida) conhecia, sobretudo dos sentimentos experimentados nos instantes maníaco-depressivos, esta cavernosa experiência da escrita, talvez até de uma forma mais profunda e doentia do que muitos escritores; disse, para nosso encanto, que escrever um romance é como atravessar um quarto escuro segurando uma lanterna que ilumina o que já existe ali. A quinta resposta à pergunta de Margaret soa mais pessoal do que parece: escrever para colocar o próprio mundo em ordem, arranjar e rearranjar o que está desarrumado, tudo feito às cegas para enfim criar luz a partir desta ordem. Mas a noção de ordem pode ser falsa uma vez que escrever também é um processo incôndito, em que o eu-escritor é espectralizado, separado do mundo enquanto mergulhado em sua arte. Claro que ele depende deste mundo ao redor para criar o seu, afinal a imaginação não passa disso, a ação de imaginar, mas imaginar a partir do conhecido e transformá-lo de muitas maneiras possíveis, e o escrever faz tremer a harmonia (se e quando ela existe) que o escritor sente enquanto sua criação é fluida. A ideia de que escrever é colocar um pouco de ordem na vida pode ser falsa, porque escrever é mexer com a ordem conforme a “realidade inventada”; muitas vezes escrever é temperar uma determinada realidade, experiência, para torná-la indelével. O sentimento que envolve esse fazer sempre virá de outro, uma constante de hidras divergindo e se bifurcando, criando novos seres e respostas infinitas. Muitas vezes o sentimento que envolve a escrita é desconhecido, mas ele está lá e não precisa da razão para sobreviver, basta ser a causa da qual nascerá este choque entre pensar, elaborar, sentir, montar e talhar. Margaret Atwood conclui que “é possível que o ato de escrever esteja ligado à escuridão e ao desejo, ou talvez à compulsão, de penetrá-la e, com sorte, iluminá-la e trazer alguma coisa dali de dentro”. Volta a ideia da necessidade, do desejo, desta compulsão, ou até mesmo agonia, de querer arrancar o brilho cardíaco do breu, e isso cabe não só na arte da ficção, mas no fazer artístico como busca, seja ela hedônica, visceral, financeira e às vezes, por que não?, fugitiva. Parafraseando a autora, é possível que o ato de escrever esteja ligado à busca pela fuga, e uma fuga que por si mesma é a busca (im)perfeita para além de si.