Sociologia da Leitura

“Reconhecer não é ler”, escreveu o educador francês Jean Hébrard. Ou seja, repetir o som e a sequência de letras empregadas em uma palavra, reconhecer seus fonemas e grafemas, não passa disso, uma observação da linguagem em sua ordenada apresentação. Ler é compreender: este se tornou o lema dos pedagogos a partir da segunda metade do século XX, época em que apenas a decifração do escrito se torna insuficiente, sendo necessário compreendê-lo.

Pouco estudada no Brasil, e possivelmente em todos os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, a sociologia da leitura é um campo que analisa esta prática social que envolve também cultura, política, instrução, conhecimento e autoconhecimento. Este estudo feito pelas sociólogas francesas Chantal Horellou-Lafarge e Monique Segré, e transformado no livro “Sociologia da Leitura” (Ateliê Editorial, 160 páginas, tradução de Mauro Gama), enriquece a bibliografia sobre o assunto e ajuda a compreender melhor uma prática talvez usual, genérica, mas pouco discutida. Esta leitura sobre a leitura, uma conveniente metaleitura, aborda seu papel e sua importância na cultura tanto de uma sociedade leitora, ou não-leitora, quanto do ser individual, de sua influência na economia, do crescimento de um lugar e do próprio crescimento.

capa de Antes de entender a leitura é preciso entender a escrita, porque aquela surge desta. O primeiro capítulo do livro, “A leitura e seu suporte”, é uma interessante aula de história sobre o surgimento do ato de escrever, do papel, dos meios de produção do mercado editorial, desde os primeiros séculos até hoje. Hodiernamente, lê-se sem compreender a história da leitura, e sobretudo a história da escritura que só passa a existir quando lida. Aqui as sociólogas deslindam as etapas que fizeram surgir a escrita, desde a ideográfica, passando pelo acréscimo das sílabas em que cada sinal representa um som, até a escrita alfabética, em que “o sinal não faz referência a um objeto ou ideia, mas a um elemento decomposto do som”. A leitura, antes uma tradição oral, aos poucos torna-se tradição escrita, e as escolas se desenvolvem, o Estado e a Igreja deixam de interferir tão diretamente nas leituras, a nobreza deixa de ser a única classe social a ler e possuir livros. É na industrialização do objeto-livro que a leitura parece tornar-se menos cultural e mais capital, transformando a leitura num consumo e o livro numa mercadoria.

O segundo capítulo, “A leitura e as instituições”, aborda como começou a prática da leitura, sendo o termo “prática” mais bem-colocado do que “hábito”, uma vez que qualquer hábito é automatizado e consequente de um condicionamento, ou seja, longe de ser um prazer, necessidade intrínseca. Se no primeiro Chantal e Monique discutem a criação da escrita, do material usado na escrita, sua difusão entre populações citadinas e rurais que aprenderam a ler, neste há um enfoque sobre o Estado e a Igreja, como as instituições lidavam com documentos e histórias, quão importantes estes escritos eram para fazer propaganda e divulgar serviços. A Igreja utilizou a escrita como propaganda religiosa, o Estado a politizou, com taxas e leis de comércio, e ambos faziam da censura seu escudo. Disseminada, em parte, pela religião, a leitura foi sendo inserida na escola através de livros ilustrados, sobretudo em comunidades protestantes, ao passo que as católicas visavam o poder, uma espécie de monopólio mental sobre o que era aprendido, e por isso ofereciam menos o objeto-livro, sua função, geralmente de ensino catequético e estreito. O Estado, por sua vez, cuidou da censura que era necessária contra ideias que tentassem fugir de sua filosofia, além de instaurar o preço dos livros, os direitos dos autores e o surgimento gradual de bibliotecas que alimentassem o interesse de novos leitores, cada vez mais frequentes e em maior quantidade.

“Ler, um aprendizado escolar determinante”, terceiro capítulo, discute o aprendizado da leitura e sua prática na escola, durante a infância. Existe um abismo entre ter a prática de leitura, que requer gosto e compreensão, e ser simplesmente alfabetizado. A criança, depois de decifrar os códigos que lhe foram colocados como linguagem única, precisa compreender sua função, sua união funcional. A leitura, o apanágio de uma sociedade civilizada, é o núcleo da ideia de desenvolvimento, de crescimento. A escola se torna o lugar do livro em meados do século XX, e divide com o espaço familial a responsabilidade do gosto pela leitura sobre as novas gerações. Nesse ambiente literário, o jovem também sente-se pressionado quando as instituições de ensino se apoiam num caráter coercitivo de leitura, em que as obras impostas tornam-se automaticamente indesejadas. O fato da coerção afasta diretamente uma maioria que tende a preferir sua liberdade na hora de ler. Aos poucos, as leituras escolares são estigmatizadas e perdem seu valor fundamental, o do interesse.

O quarto e o quinto capítulos abordam a leitura com uma olhar mais dinâmico e divergente, sobre as diferentes camadas de uma sociedade, desde ocupação até sexo. Chantal e Monique apresentam quadros de pesquisas que revelam muito sobre o leitor francês e suas predominâncias, como homens lerem mais livros científicos, mulheres lerem mais livros românticos, estudantes de universidades com grande quantidade anual de leitura, passando de 50 livros, até as camadas que menos leem qualquer estilo literário, ou apenas as revistas e periódicos, como os agricultores e outras pessoas menos instruídas – “quanto mais é elevado o nível de instrução, mais se refina e fortalece a capacidade de ler.” Assim é no Brasil e em todo o mundo.

“Sociologia da Leitura” é um estudo profundo e completo não somente sobre a prática da leitura, mas sua influência na vida das pessoas, na vida de um todo que se constrói dia a dia como sociedade politizada, como ambiente de sobrevivência. Sem saber, lemos a todo instante, nos informamos, nos deixamos levar pelos símbolos que representam sons, que por sua vez representam pensamentos e informações, cuja importância é primordial. A leitura atenta e bem-feita, não superficial, faz o homem dono de si mesmo, da sua independência enquanto aprendiz de uma arte, de um ensinamento finito ou infinito. Ler é estar disponível para o conhecimento e o maior dispositivo dessa prática ainda é o livro, que como Yvonne Johannot explica na última página, “se abre como se abre a porta de uma casa – para uma intimidade destinada àquele que possui a chave”.
 

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Alex Sens