A sensibilidade e a inocência do mal: Hitler, Korn e Black Box Recorder.

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O argumento desse artigo é de que “o mal pode ser sutil e sensível”. A idéia é que uma coisa ruim pode se travestir de inofensiva, como nas armadilhas dos desenhos animados – é só lembrarmos de Coiote e Papa-léguas, quantas vezes o Coiote montou armadilhas para o Papa-léguas lhe oferecendo alpiste (sua comida preferida)? Era uma coisa boa com uma má intenção por trás. Num mundo de aparências como o nosso, não é prudente acreditarmos em tudo o que é belo e bom – (Platão diz que tudo que é belo é bom), quantos casos já não ouvimos de pessoas que param na estrada fingindo estar com problemas mecânicos no carro, alguém para pra ajudar e é surpreendido por um assalto. Ou ainda, pessoas que se oferecem para ajudar idosos para no final assaltá-los, ou até matá-los. A beleza pode esconder muitas coisas, e a bondade muito excessiva também, afinal porque será que existem ditados como “por fora bela viola, por dentro pão bolorento” e “quando a esmola é demais o santo desconfia”? A banda norte-americana Korn e a inglesa Black Box Recorder se utilizaram desses recursos em seus discos de estréia. Da capa a algumas canções, é tudo inofensivo – há diálogos com o mundo infantil, com a inocência, para que as más intenções não sejam percebidas, pois quem irá desconfiar de algo belo e sutil como uma criança? O mesmo artifício usou a bruxa má no conto “A bela adormecida” – travestida de mendiga[1](aparentemente inofensiva) – deu a bela jovem uma maça envenenada. Quem no lugar da moça iria desconfiar de uma velhinha inocente e de seu ato gentil? O mal assume diversas formas, é o caso do Diabo: “a idéia de que o maligno podia assumir qualquer forma que desejasse também foi fortalecida pela comparação de Satanás com a serpente que tentou Adão e Eva”[2] – porém uma das formas mais utilizadas por Satanás é a sua original. Lúcifer foi um dos anjos mais próximos de Deus antes da queda, e o significado de Lúcifer é anjo de luz (ou o “portador da luz”), e como diz Paulo em sua segunda epístola aos Coríntios, “Satanás podia transformar-se num anjo de luz para poder nos ludibriar”[3].

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A capa do primeiro disco do Korn (homônimo), traz uma menina brincando numa balança num parque assustada ao ver uma pessoa que segura algo na mão direita. A pessoa não aparece na fotografia, vemos apenas sua sombra projetada no chão, iluminada pelo sol, mas olhando melhor, a pessoa segura algo nas duas mãos, não apenas na direita. Porém nessa mão o objeto – um estribo de montaria[4] – forma um símbolo ambíguo, que tanto significa o culto ao heavy metal, quanto ao demônio [em outras interpretações]. O encarte do disco do Korn apresenta brinquedos infantis – bonecas – em meio a revistas adultas, numa relação da perversidade da pedofilia, que muitas vezes ocorre pelos próprios pais – figuras de quem a criança não desconfia que irá lhe fazer algo de ruim. Duas músicas em especial demonstram essa perversidade camuflada, a última faixa “Daddy”, possui alguns elementos dessa relação. O começo algo meio sacro, uma levada hipnótica, sugerindo um quarto escuro, vozes, um clima pesado, meio Roman Polanski. A música é bastante tensa, só que não é tão pesada quanto as demais, é mais climática e os vocais de Jonathan Davis são emocionais e ora sussurrados, trazendo a tona uma inocência, ou uma violação dessa inocência. A proposta é de cantar algo macabro e perverso de uma forma sutil, assim como fazem em “Shoots And Ladders”. A música é cheia de referências malignas, de fundo um canto suave, um ritmo cadenciado, levemente pesado [sic]. A letra na primeira estrofe fala de morte (Roda em volta das rosas, bolso cheio de flores, cinzas, cinzas, todo mundo cai), a composição segue a mesma estrutura dos contos infantis, numas das partes a música diz: “três, quatro, feche a porta”, e em outra, diz: “dê um osso ao cachorro, esse velho veio rolando até em casa” – seria a mesma pessoa da capa do disco, perseguindo as crianças desde o parque? Entretanto há duas partes muito sinistras nessa música – e o detalhe, quem ouve a música sem saber o que diz a letra, é levado a pensar que trata-se de algo bom – logo depois da contagem, a canção prossegue com o verso: “A ponte de Londres está caindo, está caindo, está caindo, a ponte de Londres está caindo, minha bela senhorita”, não há como negar que a estrutura não é de músicas infantis. Em seguida, uma assustadora sentença: “Cantigas de crianças são ditas, versos em minha cabeça. Durante a minha infância eles foram ensinados. A violência escondida é revelada, uma obscuridade que parece real. Veja nas páginas a causa de todo esse mal”, essa mesma passagem consta no interior do encarte do disco, ao lado, vê-se um boneca sendo atacada por um escaravelho, numa referência a maldade contra crianças. Shoots And Ladders é uma música que fala sobre morte e pedofilia, sobre a forma como o mal pode estar nas coisas mais inocentes, o encarte ainda explora a faceta mais macabra dos brinquedos infantis, o olhar de assassinas ou de cúmplices das bonecas, tesouras jogadas, como quem esperando uma oportunidade para atacar, aliás, os brinquedos são os melhores amigos das crianças não é?

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O Black Box Recorder também joga com essa questão de inocência e perversidade – os instrumentais de John Moore e Luke Haines são doces e sutis, enquanto que a voz de Sarah Nixey é suave como de uma criança, embala-nos em sonhos amargos e cheios sombras. Assim como o Korn, o Black Box também trouxe referências logo na capa e no encarte do primeiro disco, “England Made Me”. A capa traz uma bela e doce criança deitada numa cama, porém a menina olha para baixo, parece triste, sua tristeza reflete o tom amargo e depressivo da vida do final do século XX (o disco é de 1999). No quadro na parte inferior da capa, vê-se um acidente, um avião caindo no mar – seriam as letras as recordações da caixa preta (black Box) desse avião? – e ao lado um homem, provavelmente um comissário de um trem (se é que existe), que acabou de bater e está em chamas. Lê-se na placa, “Life is Unfair” (A vida é injusta) – ou seja, ocorreu um acidente, e os parentes dos que morreram (ou até mesmo os mortos num outro plano) certamente devem ter se questionado do porque ocorrera, logo com eles, então chegam à conclusão de que a vida é injusta. Porém se juntarmos uma coisa com a outra, depressão e tristeza (da menina) mais morte e desilusão com a vida (quadros da capa), é igual a suicídio. Abrindo o encarte, se vê uma bela paisagem, um penhasco com vista para o mar, abaixo muitas pedras a uma altura imensa – uma sugestão, um convite ao suicídio também, é outra chave dessa questão muito presente na iconografia do Black Box Recorder. “O disco derrubou a crítica no chão por seu excesso depressivo” observou Marcel Plasse[5], canções como “Swinging”, “Hated Sunday” e “It´s Only The End Of The World”, trazem também elementos depressivos, algumas como Hated Sunday, dão a entender que trata-se de uma saudade, de um tempo, ou de uma condição que não se tem mais, é como se alguém tivesse se matado e hoje estivesse relembrando (novamente aqui num suposto outro plano), como em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” ou no filme Beleza Americana. Essa mesma impressão se tem ao ouvir a primeira faixa “Girl Singing In The Wreckage” – há um certo desconforto com a vida, uma sensação de fim – A. Alvarez comenta que o suicida “joga sua vida fora para poder, enfim, viver direito”[6]. Outro ponto das canções do Black Box é a sutileza dos instrumentais, “Swinging” é quase uma canção de ninar – talvez a que a menina ouvia na cama na capa do disco – enquanto que “Ideal Home” tem uma levada de pianos de brinquedo, uma atmosfera de quarto de criança, de silêncio inviolável, sem contar a voz de Sarah Nixey, proposital e perversamente infantil. Porém o grande momento do disco fica por conta da sexta faixa do álbum, “Child Psychology”, um tratado sobre a depressão e sobre as vidas destruídas das famílias que se dizem normais. A música “foi banida das rádios inglesas e teve seu clipe vetado na MTV, graças ao refrão: (a vida é injusta, mate-se ou supere isso)”[7] – e mesmo antes da retirada de circulação, a música teve seu refrão censurado. A letra da música fala de uma garota chamada Julie, que levava uma vida tediosa, turbulenta, presenciando brigas de seus pais e a mesmice da vida desses tempos. A menina tinha parado de falar, havia expressado seu desgosto com a vida (não queria ter nada mais a ver com o mundo lá fora), seus pais a levaram a médicos na tentativa de resolver o problema (fonoaudiólogos e psicólogos), mas nada disso adiantou, foi expulsa da escola por sua falta de interesse nas aulas – e talvez no futuro em si – isso nada significou para ela. Essa história foi contada sobre uma base instrumental simples, suave, com pequenos efeitos de sinos de berçário, um fundo tenso e amargo no ar, Sarah contando e não cantando exatamente, exceto no pesado refrão. O Black Box expôs a todos um problema quase oculto na sociedade, o reflexo dos problemas domésticos nas crianças, briga dos pais, violência, problemas financeiros, conflito de gerações, tudo isso acontece, mas as sociedades fecham os olhos para não ver, então quando alguém ou uma banda diz isso dessa forma tão franca e sutil como o Black Box Recorder fez, ou é boicotado ou censurado. Esse tipo de mensagem é quase subliminar, nos diz mas não de forma clara, nas entrelinhas, só que nesses casos aqui citados, a forma utilizada foi a inocência do mundo das crianças, assim como acusam Walt Disney e Xuxa de inserirem mensagens satânicas em seus desenhos e músicas respectivamente, talvez o mal pense que dessa forma não iremos desconfiar, afinal, como pensar que coisas tão belas e encantadas são tão perversas, isso não se passa na cabeça dos pais na hora de escolher um brinquedo ou um filme infantil para seus filhos pequenos.

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Falar de Adolf Hitler hoje tornou-se fácil pela quantidade de biografias, documentos, artigos, filmes e comentários que foram produzidos a seu respeito. Muitos tentaram analisar sua mente e sua vida atrás de pistas que nos levassem a entender como ele foi possível, como pode acontecer tamanha monstruosidade. O mesmo questionamento pode-se dizer de Joe Fritzl – as pessoas jamais desconfiariam que um pai fizesse o que ele fez com uma filha, uma brutalidade, o mesmo se diria então do jovem Hitler se o analisássemos através de suas telas. É sabido pela história que a academia de belas artes de Viena recusou seus quadros e telas por considerarem suas peças insuficientes e de qualidade inferior aos rigores da grande arte e das academias. Porém hoje, sabe-se que suas obras possuem algum valor – foram a leilão algumas telas de sua autoria, valendo cerca de duas mil libras no total. Porém se analisarmos mais atentamente, não está só em questão o fato de ser uma tela de um dos principais personagens da história (para o bem ou para o mal), mas também há qualidade, média segundo Herbert Weidler, dono da Weidler Auction House, promotora do evento (o leilão). Realmente, as telas em questão mostram uma certa sensibilidade no autor, uma visão no mínimo sóbria do mundo, e principalmente num mundo em guerra – algumas dessas telas foram feitas entre as décadas de 10 e 20 do século XX. Os traços de Hitler são leves, porém firmes. Não se vê nos traços a força com que comandaria a Alemanha anos mais tarde, e muito menos o ódio que expressou pelas minorias que tanto lhe desagradava. A aquarela “Farmstead” de 1914, mostra um autor um tanto tradicionalista, pois não há diálogo com as vanguardas artísticas desse século (e dessa época), como a arte de Duchamp ou Mondrian. Pelo contrário, essa aquarela se parece mais com o trabalho de Turner e com ecos no fundo das paisagens de John Constable. Claro que não chega perto desses dois grandes mestres, mas não há como negar um mínimo de ressonância desses no jovem Hitler – provavelmente inconsciente (ou não – sabe-se sobre seu apreço pelas artes). Outra aquarela do jovem Hitler mostra um homem sentado em uma ponte, o quadro é belo e simples, pintado em cores leves, passa uma sensação de paz e tranqüilidade. O especialista em documentos históricos da empresa Mullock´s, Richard Westwood-Brookes, disse: “as pessoas esperam que suas pinturas reflitam imagens agressivas, temas militares, batalhas e gente sendo assassinada, mas não há nada em sua produção que sugira isso”[8], ou seja, se alguém que nascer hoje e não souber da história do autor e for desafiado a imaginar o que alguém que pintou tais telas fez nos seus anos seguintes, provavelmente a resposta não será tornou-se um ditador e comandante de uma das maiores tragédias de todos os tempos – o holocausto. Talvez se fossemos aproximar Hitler de algum artista, olhando pela ótica do que ele fez e do reflexo disso em sua obra – Francis Bacon seria o mais apropriado. Como o mal pode ter sido sensível? Como um artista pode se tornar um megalomaníaco comandante de uma tragédia como o holocausto? Como ele pode se tornar tão perverso, sendo que seus trabalhos artísticos nada revelam sobre essa sua faceta, como disse Westwood-Brookes? Isso nos mostra que o lobo na maioria das vezes vem em pele de cordeiro, e coisas aparentemente boas podem ser ruins na essência. A semente do mal pode ser cultivada sem que percebamos, portanto é necessário estarmos sempre atentos a tudo, ao mundo que nos cerca, as relações humanas, pois as vezes levamos inimigos para casa pensando serem nossos amigos, as vezes compramos gato por lebre e no final da história sempre ocorre algum malefício para quem não percebe o perigo iminente em atos, gestos e conjunturas sociais. Portanto fiquemos atentos aos desenhos de nossas crianças, vejamos o que querem dizer, pois as vezes por trás de rabiscos simples e tortos, estão traços de uma personalidade ruim e maléfica, e assim como não desconfiaríamos de um pintor com a sensibilidade de Hitler ou de letras de música evocativas do universo infantil, não desconfiaremos das crianças, mas veja nas páginas da infância a origem de todo mal.

 

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Notas.

[1] WARNER, Marina. Da Fera à Loira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.255.

[2] O´GRADY, Joan. Satã, O príncipe das trevas. São Paulo: Mercuryo, 1991. p.55.

[3] Ibid.

[4] BRAGATTO, Marcos. Korn – Música nervosa para pessoas nervosas. Rock Press. Rio de Janeiro, Nº 04, p.25, abril. 2000.

[5] PLASSE, Marcel. Black Box Recorder. Showbizz. São Paulo, Nº 05, Edição 190, p.12, maio. 2001.

[6] ALVAREZ, A. O Deus selvagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.115.

[7] PLASSE, Marcel. Idem.

[8] Quadros pintados por Hitler são leiloados no Reino Unido. O Estado de São Paulo, São Paulo, 23 de abril. 2009. Caderno 2/Variedades.

 

 

 

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About the author

Marlon Marques Da Silva

Humano, falho, cético e apenas tentando... Sou tio, fã de Engenheiros do Hawaii, torço pro Santos F.C. e não me iludo com políticos e religiosos e qualquer discurso de salvação. Estudei História, Filosofia, Arte, Política, Teologia e mais um monte de coisas. Tenho minha opinião e embora possa mudar, costumo ser aguerrido (muito) sobre ela e geralmente costumo ir na contra-mão da doxa.