Navegando no Cotidiano By Luciana Santa Rita / Share 0 Tweet No livro “Uma aprendizagem”, Clarice Lispector nos presenteia com a personagem Lóri que precisa atravessar um oceano para se ver pronta para o amor de Ulisses. Entendia que a dor era mais suportável e compreensível que a promessa de frígida e líquida alegria da primavera. Emociono-me a cada página, pois Clarice escreveu após um acidente que a levou a graves queimaduras e, contraditoriamente, tão cheia de vida, delineia como o amor é feito, repaginando as escaladas, dores e inúmeras atrocidades para a sua plenitude. Nesse mar de coincidências e milagres escreve: “Quem é capaz de sofrer intensamente também é capaz de uma intensa alegria” e antecipa o futuro com a frase “Dia e noite não deixava apagar-se a vela para prolongá-la na melhor das esperas”. Na contemporaneidade, a impressão que tenho é que somos abduzidos a prenunciar a felicidade como sentido e respostas, resultado de uma eleição sem o segundo turno frente a uma vastidão de lágrimas no julgamento do mensalão. Não se recomenda mais agonizar o direito à felicidade ou o acerto incerto da rotina do final desejado. De forma sutil, mas com inspiração siciliana, evita-se a morte súbita da tristeza darwinana que não tem mais sentido como sentimento passageiro. Exige-se o registro da felicidade avassaladora em cartório antes da terraplanagem do terreno. Em resposta ao desejo de dias felizes, atiça-se o lobo com uma força irresistível e quando o corpo precisa descansar, aceleramos, pois temos que manter a natureza selvagem pelo tempo da promessa de introduzir poder a vida diária. Entre um ataque e outro, distanciam-se o medo e a fragilidade, perdem-se os sentidos, levando, então, à direção errada. Nesse sentido, a subtração da felicidade antecipa a indução ao parto ou a negação da tepidez do vento, que sem impossibilidade de abstenção carrega no colo o esperado como se fosse tão frágil como o bibelô de vidro. Transforma a dopamina no lançamento da moda em todas as estações. Viramos escravos do prazer e não entendemos a felicidade como evento da promessa, mas apenas como merecimento do cotidiano. Não nos contentamos com o par de chinelos disponível no banheiro para se passar a deriva no final de semana. Não aceitamos a ausência de democracia e da liberdade da felicidade fora de nós mesmos. Só ficamos na porta se for a hora da pizza. Culpa-se o delivery pelo colesterol. Não nos entendemos com o pouco a pouco da felicidade, exigimos o direito à totalidade. Temos necessidade de superlativo na lembrança do ontem e requeremos que a virada do dia seja a inesquecível virada do ano. Esperar a chamada a juízo ou o parcelamento da felicidade vira trabalho escravo, diria exploração ou pedofilia. Penso que no futuro, após o holocausto da dor pela anestesia diária com endorfina em pó, serão encontrados vestígios da nossa antiguidade quando os embates eram feitos pela conquista tencionada da felicidade. Quando se tentava vencer a tristeza com a esperança natural e não com a artificialidade química. Havia chances de se comemorar o vestibular sem a complexidade do ENEM. Percebo que, diferente de nossos pais, no futuro ser feliz não será apenas o bem-estar e a sentença não acontecerá nas pequenas causas, mas será recursal no STF, passando pelo desejo insólito de sentir novamente, mas que não será mais compreendido ou mesmo terá sentido. O vício nos deixará inerte. Diria que teremos saudades de ter suportado apenas o menos possível. Talvez se repudiem o efeito de dopamina ou sensação de prazer continuo, distante das férias de verão na praia, que nos livrava da Dom Pérignon, do cigarro, do Adderall e da Ritalina. Mas não existirá mais como disfarçar a poeira embaixo do tapete e a desilusão do talvez. Lembro quando criança que descrevia a felicidade como algo a acontecer com data marcada, seja pelo ganho de uma boneca nas datas festivas, pela chegada da minha avó com balas ou mesmo na esperança do fim da fome da África ao cantar ”We are the world”. Talvez se bastasse esperar um ano pelo lançamento da nova melissa. Felicidade era acreditar que o mundo não acabaria no ano 2000 ou mesmo que não haveria a detonação da bomba atômica pelo EUA ou pela União Soviética. Se a sorte tivesse ao nosso lado, casar com o primo do namorado da melhor amiga e criar filhos estudando no mesmo colégio do passado. Ser feliz significava ter um emprego após a faculdade, ter a primeira menstruação, beijar o cara mais lindo do colégio na frente das rivais e dançar a valsa dos 15 anos com o Charlie, integrante dos Menudos ou ir a Disney. Felicidade não passava pela inquietação de apressar a sua chegada, era como garantir que as estações mudariam sem a necessidade de compreensão. Aceitava-se a dúvida. Aceitava-se a espera. Dividia-se o abandono. Não era preciso entender, apenas se aguardar. Tinha-se esperança no adiamento e na insuficiência do momento. Felicidade era colecionar papel de carta sem esperar o novo lançamento, entender as disputas e os blefes nas desigualdades. Entendia-se que a beleza não era para todas e não havia dores quando não havia aptidão para esportes. Aceitava-se a frustração como amiga. Se não havia baladas no sábado à noite, era normal aguardar o domingo assistindo “Quero ser grande” de Tom Hanks sem ter que se sentir mal por não suportar o peso de crescer. Em outros tempos, o direito a felicidade não era um mantra carmico, pois entedia-se que não havia como morrer antes do tempo, acreditava-se nas palavras em “Coração de Estudante” de Milton Nascimento: “Quero falar de uma coisa. Adivinha onde ela anda. Deve estar dentro do peito ou caminha pelo ar. Pode estar aqui do lado. Bem mais perto que pensamos (…)”. Atingir a felicidade aos poucos parece que nos leva ao tédio pela ausência de satisfação evidente e talvez deixe o corpo com repulsas ao estresse. Diria que ao sentir a expectativa da felicidade, ignoram-se os legados do vício e impede-se a potencialidade para o bem que o trauma carrega. Na atualidade, se não há reciprocidade para o arco-íris, não vale manter a encomenda da liberdade da chuva para a chegada dos primeiros rascunhos do sol. Tira-se o mérito do lugar da tristeza e o aviso prévio da própria morte, perdendo-se a vantagem da dor para garantir o direito vitalício à felicidade. E no fim, se você acredita em uma felicidade cujo meio é instantâneo ou indolor, conteste, pois não é felicidade, é apenas a tristeza em dias nublados quando ainda não foi dormir para ampliar o vazio do sempre.