”Porque o amor é a coisa mais triste quando se desfaz “

Quando se chega a uma certa idade, o sofrimento inevitavelmente te comove. É tudo o que queria mostrar, nada mais”. (Frase de Michael Heneke sobre o filme “Amour”, após ganhar a Palma de Ouro do 65º Festival de cinema de Cannes)

Por trás dessa aparente inquietação, penso que Heneke desejava muito mais que apresentar uma parábola do sonho do porto seguro, mas talvez a improbabilidade do fim como a  possibilidade dos detalhes de uma relação amorosa que não se inspira em anteriores ou em um amor terminado.

Elaborar uma análise contemporânea sobre a continuidade do amor é pretensão para qualquer um que nunca presenciou a indiferença estéril da natureza. Diante dessa realidade, haveria um silêncio estridente da batida do coração pela eternidade que não se concretiza, mas que se faz justiça ao não perder o sentido da frase: até que a morte os separe.

O filme “Amour” apresenta a espaçada solidariedade de um casal de idosos face o caminho para a morte. Contempla uma mulher idosa que morre depois de um AVC e o seu marido, que após o zelo incondicional durante a sua doença,  morre, mas de amor. Mas do que milagres da humanidade, o filme repete a coincidência do destino.

Existe pouco diálogo no filme, mas inunda-se na compaixão perante a sintonia da dor da perda. Passa-se da obstinação de mera fantasia romântica à rejeição do amor morno, platônico e insuficiente. Presencia-se no que se julga morto a essência da liberdade súbita do amor.  Sem delírio, destaca a paixão como a alegria da comoção na espera do adeus que nunca se acusa.

Avesso ao melodrama, espelha, não um amor sádico, tenso, instintivo e que por mais que se possa encantar, pode destruir. Diria que destitui as palavras para se entender o melhor do que um amor pode oferecer. Talvez, aperfeiçoar a resistência à consolidação das coisas visíveis; como se dos embates que não enxergamos, auferisse-se a negação fulcral à concretização do sonho em si mesmo.

Prenuncia a certeza do ser feliz na dualidade para proteger o mito do amor romântico, precisando, enfim, apenas encontrar a pessoa certa.  Torna o amor uma simplicidade perante o adeus,  a solidão e o desencontro. Torna a verdade do fim semelhante a um grito sem eco na eternidade.

Alguns romances, em geral, definem que os amantes não precisam de cúmplices ou de divisores, precisam de tempo indefinido para uma colheita  abundante. Nessa lógica. quem poderia desconsiderar o amor de Romeu e Julieta, com o termo da ”síndrome do amor inesgotável”. Quem poderia desconsiderar o amor dramático de Abelardo e Heloísa, ou mesmo de estancar  o ontem de Orfeu e Eurídice ou o amor implacável de Tristão e Isolda.

É por isso que nesses romances, não há sobreviventes como uma peça barroca, culminando no sentido do amor como autor inconsciente do destino dos momentos enunciatários da plateia a dois. Como tal,  não há fila parada, mas corrimãos da exigibilidade do direito constitucional da recordação, martelando o apaixonar e nunca o desapaixonar. Não há pressa, não há cansaço e, sim, a constatação do amor, que sempre será o inquestionável amor.

De um lado, o encanto desse amor advém da construção simbólica da felicidade na relação, exorcizando qualquer chegada solitária a estação de trem, de forma despretensiosa, livres das turbulências do sentido do amor que pode chegar fora dos trilhos e se despedaçar pela paixão mortal,  com intimidades e sem melancolia.

Por outro lado, alguns romances não são feitos para uma vida inteira e, silenciosamente, se submetem a natureza cantada por Jobim em “Amor em Paz”: Eu amei, e amei ai de mim muito mais do que devia amar. E chorei ao sentir que iria sofrer, e me desesperar. Foi então, que da minha infinita tristeza aconteceu você.”

Nesse tipo de sentimento, a dor do amor já seria morta, feita de um sonho que se distancia do ponto final e desafina na forma mais despegada de se querer amar. Diria um círculo incompreensível do rejeitar e ser rejeitado. Aliás, no lugar de seguir em frente, descarrilha-se, implora-se, humilha-se e persegue as agruras amorosas como uma época de desassossego.

De forma geral, nesse amor, vive-se de expectativas, aproveita o pretexto da ilusão para gerar novas; sofre, para fazer sofrer. Aproveita para tirar licença da razão, manter a resistência ou se rebelar contra a incredulidade do guarda-chuva preto. Bastaria apenas desistir do sofrimento, colher os frutos na ausência da beleza e enfrentar o período de revisão das desilusões.

Algumas pessoas passam a vida inteira, substituindo apenas o protagonista da história, de um jeito ou de outro, se repetem na sessão da tarde por vontade ou falta de opção. Deixam a reprise como uma resignificação do amor eternizado.  Aprendem a viver com a saudade.

Com uma aparência superficial, reveste-se da incapacidade, mesmo frente ao abandono, de apagar o amor de sua vida e de forma masoquista afunda-se na culpa, encontra arrependimentos, impulsos éticos ou morais, continua no nascente do amor ou deseja voltar a distrair o tempo com ilusões.

Por esse amor, se deseja morrer, com as pieguices naturais do exagero e da falta de controle, enquanto se delira que disso vive-se, e, logo, deve ser amor. Assim, o fracasso passa a ser visto como estar só no restaurante e não ter terminado a sobremesa da saudade, imobilizada na acomodação da digestão, como uma proteína sintetizada das refeições inacabadas.

Nesse período poderia se digerir as aludidas muletas do sódio e eliminar da varanda aqueles pegadores antigos que não prendem mais e só proporcionam ferrugem. Talvez, pudesse existir esclarecimento do tempo, mas desejando ou não, deveria ser possível,  desfazer  o irreversível.

E por fim, lembrar que o amor também termina, encera e frauda. Agir como aquela frase do filme “Abraços Partidos” de Almodóvar: “Os filmes precisam ser terminados, ainda que às cegas” e acreditar que é muito raro que dois desejos se encontrem nos mesmos corpos e se correspondam, após o desencanto.

Na pior das hipóteses, fazer valer a frase de que o tempo não resolve tudo na impossibilidade de ser, além do que se é. E sem pedir o desejo do outro, não se ultrapassar, não resolver a pendência e nem aniquilar os sentimentos.

E como um escravo de si mesmo, viver por anos a fio em um espaço que simplifica a lágrima, se maltratando, faltando a vida, perdendo as partes do dia que se tornam iguais. Aceitando-se o frio, a falta de sono e a lassidão da espera de uma noite mais que silenciosa. Relembrando, assim, o máximo da solidão.

Penso que não há triunfo no amor que se desfaz, pois como diz Jean-Louis Trintignan, intérprete de Amour:  “Vamos tentar ser felizes, nem que seja só para dar o exemplo”.

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Luciana Santa Rita