Editorial By André Egg / Share 0 Tweet Último dia 31 foi o dia de lembrar os 47 anos do golpe de 1964, que derrubou o presidente constitucional João Goulart, e estabeleceu o governo do General Castelo Branco. Alguns analistas consideram mais correto falar em “golpe civil-militar”, ao invés de apenas “golpe militar”. As palavras, a mais ou a menos, contam muito nas definições conceituais, que carregam leituras do passado prenhes de futuro. Neste sentido, “civil-militar” nos lembra que o golpe não foi apenas gestado nas casernas, mas que elas foram o apoio para setores políticos civis – aliás o golpismo não era novidade na política brasileira. Para ficar apenas nos mais notórios, foi com um golpe que D. Pedro I, da família real portuguesa decretou a “Independência” em 1822, antes que algum republicano se engraçasse e toma-se a jóia dos Bragança. O golpe completou-se com a Constituição outorgada de 1824, que tinha o “detalhe” do poder moderador. Foi também um golpe que levou à Abdicação em 7 de abril de 1831, e à Regência. Que terminou com o “golpe da maioridade” em 1840, fazendo tomar o governo de fato o rei de direiro (D. Pedro II), mesmo que contasse com apenas 14 anos de idade. Foi um golpe militar que proclamou a República em 1889. Foi um golpe que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930. Foi outro golpe que cancelou as eleições de 1937, levando à ditadura do Estado Novo (1937-1945). Getulião já tinha uma constituição na gaveta, promulgada no dia seguinte ao golpe. Foi um golpe que tirou Getúlio em 1945, e garantiu a realização de eleições sem ele na presidência. O vitorioso? – o Ministro da Guerra, General Eurico Gaspar Dutra, chefe da ala filo-nazista do Estado Novo, e que foi o presidente da “redemocratização”. Foi para evitar o golpe que se avizinhava no decorrer das investigações do atentado da Rua Toneleiros que Getúlio se suicidou em 1954. Para assumir em 1956, Juscelino Kubitschek teve de contornar um golpe – afinal, a lei não era clara, e ele foi o mais votado em 1955 mas não teve a maioria dos votos. Em 1961 Jânio Quadros renunciou com a intenção de dar um golpe. Não deu certo, mas para evitar que o vice-presidente constitucional assumisse, foi dado o golpe do parlamentarismo de ocasião. E foi quando o plebiscito decidiu pelo presidencialismo, e Jango começou a falar nas Reformas de Base, que foi dado o golpe de 31 de março de 1964. Instaurou-se um Regime Militar, ou Regime Civil-Militar, ou Ditadura Militar: conceitos variados para todos os gostos. Os golpistas falavam em Revolução, em Redentora, e brandiam com – ironia das ironias, a salvação da democracia. Sim é isso mesmo que você está lendo: os setores conservadores (reacionários, portanto, não revolucionários) dizem que deram um golpe contra o presidente constitucional para preservar a democracia. É uma coisa para se dar risada, não fosse pelo fato de este tipo de argumento mentiroso continua sendo usado até hoje. Por exemplo, por um ministro do Supremo Tribunal Federal, que deveria ser a casa de defesa do regime democrático. Ou um jornalista que foi pego no contrapé aqui num dos blogs do OPS, justamente fazendo este tipo de apologia, e tentando posar de democrata. Outro que sempre faz apologia do tempo em que os militares assaltaram o Estado, é o deputado federal Jair Bolsonaro. Recentemente ele foi pego no contrapé pelos humoristas do CQC, e destilou todo o mal que está no seu coração, a ponto de alguns defenderem que ele seja cassado, outros acharem que é bom que a direita ponha a cara pra fora. Ricardo Noblat, um jornalista de peso, com cada vez menos credibilidade, saiu em defesa de Bolsonaro, e recebeu uma devida escovada nesta carta de Marjorie Rodrigues no Amálgama. E porque tanto barulho em torno de um regime político que já despareceu há tanto tempo? Essa é a questão, e o problema é muito mais grave. Eu comecei essa história dizendo da nossa tradição de golpes. Bem, entre os muitos golpes, o de 1964 não foi o último. O próprio Regime Militar foi uma história de golpes dentro do golpe, com a subida da “linha dura” após a morte misteriosa de Castelo Branco, acompanhada de mortes não menos misteriosas de JK e Jango. Pesa sobre as três a clara suspeita de assassinato. O golpe magistral, maior do que todos os anteriores, foi a condução do processo de abertura. De modo que saímos do Regime Militar sem nunca superá-lo. Quem diz isso não sou eu, é o prof. Adriano Codato, do departamento de Ciências Socias da UFPR. Veja este ótimo texto do qual eu destacaria a interessante constatação de que o Regime Militar em si durou de 1964 a 1974, iniciando-se com o governo Geisel o processo de “abertura” que foi um aumento, e não uma diminuição de autoritarismo, e que durou mais que o próprio regime (1974-1989). A primeira eleição presidencial após o golpe de 1964, foi realizada logo após a promulgação de uma Constituição viciada. O único ator político a apontar isso com clareza foi o PCdoB. Á época o partido argumentava que não era possível elaborar uma Constituição democrática com um congresso eleito e funcionando sob as leis de exceção do Regime Militar. Mas a empolgação com a “abertura” era tão maior, que fechamos os olhos para isso. Considero que, da mesma forma, quando elegemos Lula, ficamos tão empolgados com a simbologia carregada nesse episódio, que nos esquecemos que ainda não acertamos as contas com este passado, o que é demonstrado com a terrível força simbólica que tem o fato de que até hoje não abrimos os arquivos militares, não enterramos os mortos que foram vítimas do Estado durante o regime de exceção, não punimos aqueles que no exercício de funções públicas mataram e torturaram. Enquanto não fizermos isso, não poderemos afirmar que superamos o Regime Militar, que criamos uma democracia. Estaremos sempre com essa democracia pela metade, onde o Estado é tomado pela corrupção, as eleições são viciadas, a polícia continua torturando e matando, entre outras características do nosso país a nos lembrar que não somos tão democráticos como imaginamos. É por isso que é muito atual e necessário um movimento como esse pela abertura dos arquivos do Regime Militar, que vai além do ativismo na internet, e ganha foros na academia, como demonstra este trabalho apresentado por Murilo Correa, professor e pesquisador da área do direito, num seminário acadêmico intitulado Direito e Ditadura. Murilo Correa é colunista do OPS, e seu trabalho aponta para outra questão que é fundamental na superação dos fantasmas do Regime Militar: apesar de ter sido um regime de exceção, não houve nenhuma ruptura no sistema jurídico brasileiro, nem para entrar nem para sair da “ditadura”. Sabemos de partidos políticos e de deputados cassados, de ativistas presos e executados ilegalmente. Eu nunca soube de juiz cassado, nem de intervenção em algum tribunal pelos militares, o que denota o índice de apoio que o Golpe Militar teve no poder mais conservador da nossa República.