A Usucapião Autoral

Existem textos que circulam pela internet, e pelo mundo não-virtual, que são divulgados como sendo de autoria desconhecida ou, ainda, atribuídos indevidamente a escritores famosos ao invés de aos verdadeiros. E o maior perigo: você, sem o saber, pode estar contribuindo com isso.

Alguns denominam esta prática ilegal como plágio, ou usurpação autoral, ou furto de bens intelectuais. Aqui, eu preferi compará-la à usucapião, pois pela debilidade da lei de direitos autorais e pela morosidade da justiça, autores e tradutores de menor reputação, mesmo com direitos garantidos pela legislação, têm absorvido prejuízos quase que diariamente, e outros têm tido lucro em cima do trabalho do verdadeiro escritor, tais quais "posseiros" ilegais.

A usucapião – palavra comum de dois gêneros e que, portanto, pode ser usada tanto no feminino quanto no masculino1, mas que eu utilizarei eternamente no feminino por pura opção sexual pessoal: o feminino sempre deve vir na frente, 😉 – nada mais é do que um modo de se adquirir a propriedade de bens móveis e imóveis alheios através da posse prolongada destes, desde que o posseiro siga as regras estipuladas pelo Código Civil2. Reparem a ênfase no bens móveis e imóveis. Para esclarecimento inicial, legalmente, a usucapião NÃO É autorizada para trabalhos intelectuais, científicos e artísticos. Até porque permitir isto seria ridículo. Mas, acontecem atualmente no Brasil algumas práticas – principalmente na área literária e que, como sempre, refletem nas mídias virtuais e televisivas – que, apesar de ilegais e imorais, caracterizam um tipo de “usucapião autoral” – expressão que cunhei especialmente para este artigo. A usucapião autoral seria a posse ou apropriação (pela propagação) do trabalho de alguém como sendo seu ou de terceira pessoa durante um período prolongado de tempo, causando danos morais (difamação) e materiais (financeiros) para o verdadeiro autor.

Com um exemplo hipotético, imagine que você tenha um blogue, ou uma coluna para em website importante, e escreveu um artigo chamado Como Reescrever a Palavra Amor. Você gastou seu tempo pesquisando fontes confiáveis, buscando as melhores palavras para expressar o que desejava, alterando a ordem dos parágrafos incansavelmente em busca de uma melhor coesão no seu texto, fazendo incontáveis revisões antes de seu rebento nascer. E, independente se ele fará algum sucesso ou não, você tem orgulho dele, afinal é fruto do seu intelecto e da sua força de vontade. Porém, e sempre tem um porém só para atrapalhar o final feliz, alguns anos depois, quando você já se esqueceu do texto, recebe uma daquelas correntes de power-points motivacionais, com o título Como Reescrever a Palavra Amor, de Fernando Pessoa. Percebe que o seu texto foi alterado grosseiramente, e grosseiramente atribuído a outro. Sente-se como Da Vinci se sentiria vendo um bigode feito na Monalisa e uma assinatura de Salvador Dalí no quadro. Você responde a quem lhe enviou o email que o texto é seu, e pede para a pessoa retransmitir a informação da autoria corrigida pelo caminho reverso. Mas, ao googlar por aí, percebe que o estrago é bem maior do que pensava. São centenas, milhares de websites atribuindo o seu texto a outro. E o pior: vê que uma agência de propaganda, um programa de televisão, ou um jornalista usando o seu texto, citando a autoria incorreta e não te pagando nadica de nada.
Parece um conto mirabolante, meio ficção meio terror psicológico, não é?

Mas é o que vem acontecendo. Que o diga Edson Marques, autor do poema Mude, que não só viu o seu texto circulando como se fosse de Clarice Lispector, como utilizado em um comercial da Fiat, que pagou os royalties para os herdeiros da Clarice, que receberam injusta e silenciosamente pelos direitos autorais. Edson entrou na justiça pelos seus direitos, mas até agora não houve uma solução para a pendenga nem dinheiro algum. E ele não está sozinho, outros escritores talentosos têm visto seus textos sendo atribuídos a Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, Fernando Pessoa, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor, Jô Soares, Shakespeare, entre outros. São tantos escritores escrevendo enquanto dormem, até mesmo enquanto estão mortos, que Vanessa Lampert resolveu catalogar os principais, criando o blogue Autor Desconhecido para “provar que o autor desconhecido não existe”.

Há ainda, exemplos históricos, e até internacionais, de usucapião autoral. Como no caso do poeta Eduardo Alves da Costa, que escreveu o poema No Caminho com Maiakóvski, atribuído erroneamente em 1970 por Roberto Freire em seu livro Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu! ao próprio poeta russo Maiakóvski. Apesar de Freire retratar posteriormente o erro, o estrago já estava feito, e acabou virando um poema-bola-de-neve, sendo que, depois “Gabriel García Márquez, Jorge Luís Borges, Wilhelm Reich, Bertolt Bretch, Leopold Senghor, […] Jung, já foram citados como seus autores”3. O escritor Moacyr Scliar teve a idéia de seu livro Max e os Felinos usucapiada no estrangeiro, pelo canadense Yann Martel, no livro A Vida de Pi, que ganhou o Prêmio Booker Prize, de 2002, uma espécie de Oscar da Literatura Inglesa. E a lista só parece crescer, outros escritores prejudicados foram Artur da Távola, Martha Medeiros, Silvana Duboc, sem falar dos estrangeiros e tantos outros escritores talentosos que se vêm nesta situação utópica.

E o pior é que você pode estar ajudando isto acontecer. O simples encaminhar um email ou uma apresentação do power-point pode estar prejudicando um escritor honesto e talentoso e beneficiando algum posseiro ilegal. Mas você pode ajudar para que isso não aconteça com outros, para que no futuro não aconteça com você também. Ao receber um email pela internet, seja como texto, como apresentação ou como vídeo, antes de repassá-lo adiante, faça uma pequena pesquisa na internet para cientificar-se de que a autoria procede. Se não, devolva o email para o remetente (ou para todos se o campo Responder para todos estiver habilitado) informando o autor verdadeiro.

Talvez os principais motivos para tal descaso seja porque: 1) a legislação brasileira – a lei 9.610/98 – que deveria proteger os direitos do autor não é tão eficaz como nos países estrangeiros, e em caso de disputas internacionais, costumamos perder; e 2) a justiça brasileira costuma demorar para tomar decisões que envolvem processos de direitos autorais e quando o faz opta por valores indenizatórios insignificantes, algo comum no Brasil. Geralmente ganham os escritores que tem uma grande editora por trás. O escritor comum, talentoso mas desconhecido, parece não ver tão fácil assim os seus direitos respeitados.

Apesar de algumas pessoas fazerem ingenuamente por desconhecimento, como no caso dos emails encaminhados, outros já o fazem por dinheiro. Até os tradutores não escapam do usucapião autoral. É o que pesa contra a Editora Martin Claret – conforme denúncia do blogue Lendo.org –, que na sua série de clássicos em edição de bolso, vêm sendo acusada de apropriar-se indevidamente de traduções de outros, criando ou indicando nomes de outros tradutores só para não pagar direitos sobre a tradução.

Neste caso, o leitor também pode fazer a sua parte. Quem merece respeito pelo que escreveu é o autor, verdadeiro, da obra. Então, não compre os livros usucapiados pelas editoras farsantes. Não financie o tráfico e o contrabando de obras literárias. E, acima de tudo, divulgue as informações aos outros. Só através da disseminação das falcatruas que existem hoje em dia, poderemos ficar tranqüilos que os verdadeiros mestres receberão pelo seu talento e esforço e que, se algum dia estivermos entre eles, não seremos passados para trás por herdeiros de autores mortos ou por editoras inescrupulosas.
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REFERÊNCIAS

1. Boletim Não Tropece na Língua n.º 129, escrito por Maria Tereza de Queiroz Piacentini, diretora do Instituto Euclides da Cunha (www.linguabrasil.com.br).

2. BRASIL. Lei 10.406/2002. Código Civil. Artigos 1.238 a 1.244 para bens imóveis e artigos 1.260 a 1.262 para bens móveis (http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm).

3. COSTA, Eduardo Alves da. No caminho, com Maiakóvski: poesia reunida. São Paulo: Geração Editorial, 2003.

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Jefferson Maleski