Psicose e justiça de massa: entre o espetáculo e o juízo universal

Por Murilo Duarte Costa Corrêa, editor do blog A Navalha de Dalí

 

Antes que digam, esse texto não chega atrasado. Ao contrário, ele adianta; adianta os muitos julgamentos-espetáculo a que ainda assistiremos estarrecidos, indignados, maldizendo a justiça que não vem, ou comemorando a reação da horda ridícula, mirrada e cristã contra o indivíduo.

O caso Isabela é emblemático a respeito da relação entre a patologia coletiva, que combate uma sociedade criminogênica com mais crime e violência organizada, e a normalidade e generalidade que a violência dos poderes de estado (aí incluídos os mass media) podem alcançar.

Poucas semanas depois de a garota ter sido defenestrada, jornalistas de todo o Brasil davam sua sentença; lia-se em uma das capas da Veja: Foram eles. E Veja afirmava isso a partir de um simples inquérito policial – mero procedimento investigatório em que a ampla defesa e o contraditório sequer são admitidos, pois impertinentes diante da natureza jurídica naturalmente inquisitória da fase investigativa.

As restrições talvez fossem menores caso não se tratasse de um crime contra a vida, de apelo emocional, que seria, como foi, avaliado por um júri popular, e caso não houvesse esse movimento burguês anti-impunidade “para certos crimes, mas não para todos”; “para os crimes cujas vítimas são visíveis, não justiça para as vítimas invisíveis”. Não se vê ninguém fazer vigília na frente do Supremo, pedido a procedência da ADPF n. 153 – embora as organizações de proteção aos direitos humanos continuem acompanhando o caso; o fato é que ninguém se interessa pela invisibilidade dos mortos, mas pelas visibilidades, e pela incontornabilidade, do poder.

Esse é o caso de Isabela e, ao que tudo indica, deverá ser também o caso do assassinato de Glauco e de Raoni. A grande mídia usa a morte dos dois para questionar – veja bem, não a questão do tratamento psiquiátrico no Brasil, não os problemas sociais gravíssimos envolvidos pela doença mental, tampouco a falta de políticas públicas de amplo espectro para prevenção de desenvolvimento e agravamento de doenças mentais (como talvez fosse defensável), mas – a liberação, pelo governo federal, da utilização do chá do Santo Daime em cerimônias religiosas, o qual tem efeitos alucinógenos. A discussão é, pois, sobre a liberação do chá do Daime, que teria servido de fator desencadeante para um surto psicótico em um sujeito provavelmente portador de esquizofrenia, e não a radical exclusão dos doentes mentais, que só recebem alguma atenção quando cometem um crime de grande magnitude, ou quando nos falam sobre o fim do mundo e a vinda de algum messias nos centros das cidades.

 Isso não justifica nem torna qualquer crime, tampouco a prematura morte de Isabela, Glauco ou Raoni, aceitáveis. Contudo, o retorno vingativo da cosidetta “justiça” sobre os criminosos não os reconhece mais do que como excluídos; estatísticas indicam que, no Brasil, há cerca de 1,6 milhões de pessoas (o que equivale a uma Capital do porte de Curitiba) portadoras de esquizofrenia – a maioria delas, em situação de mendicância. Constatar que esses números talvez sejam modestos é fácil: escolha uma grande cidade e ande pela sua cracolândia (toda grande cidade tem uma e, se não tem, em breve terá).

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 No curso da Segunda Dissertação de Genealogia da Moral, F. W. Nietzsche oferecerá uma curiosa, e vitalista, definição de direito. Nietzsche afirma que se considerássemos o direito sob uma perspectiva histórica, veríamos que ele representa precisamente “a luta contra os sentimentos reativos”.  No decorrer do tempo histórico, o direito teria implicado uma conduta agressiva voltada a conter os desregramentos do pathos reativo a fim de impor um acordo. Ao passo em que torna certos atos humanos, naturalmente produtores de ressentimento e motivadores de vingança em uma afronta à lei, a lei surgirá precisamente para tomar lugar à vingança, desviando esses sentimentos imediatamente orientados à revanche.

Contudo, os rebanhos se organizam apressadamente. Atualmente, organizam-se em congregações que permitem entrever a identidade entre justiça e desejo; o desejo de justiciamento e a justiça propriamente dita são uma e mesma coisa. A culpa, como em Na colônia penal, de Kafka, é sempre indubitável. “Foram eles”, ou “O psicótico e o Daime”, dizem as capas das revistas semanais.

Contudo, precisamente o que converte o desejo coletivo – como campo imanente da justiça – em um sentimento reativo, em uma vingança íntima mediada publicamente pela lei e pelas instituições, é a mediação do inconsciente coletivo pelas grandes máquinas semióticas contemporâneas: os mass media.

O mesmo ponto em que a culpa se torna indubitável (“foram eles”, “o réu psicótico, daimista e confesso” etc.), em que o julgamento se faz no corpo do socius, como uma emanação de uma sobre-regulação simbólica do inconsciente coletivo, termina por confundir-se com o momento em que o desejo ativo de justiça se torna um desejo reativo de vingança íntima e vergonhosa. Compartilhamos com os outros as nossas vergonhas, vamos dormir ao relento, assim como os psicóticos dos centros das cidades fazem todos os dias, e também por um delírio (que só é chamado “verdade”, porque é fruto do moralismo coletivo): para velar pela punição dos culpados, pela justiça das vítimas – pois os acusados são, sem dúvida, culpados.

O desejo toma, então, um caminho sem volta; a linha de fuga da justiça converte-se em linha de abolição absoluta – punição a todo custo, culpa a priori, expiação e conforto às vítimas. A perversão coletiva, que usa a lei para aplacar seu sentimento pessoal de vingança – e o brasileiro médio é tipicamente perverso em suas relações com a lei –, resultará, de tempos em tempos, na condenação de sujeitos submetidos aos ritos sacrificais contemporâneos. Os mass media encarnam a função de verdadeiros pontífices, hermeneutas da vontade divina, proclamadores da culpa; a lei e as instituições fazem as vezes dos instrumentos de suplício, legitimam a imposição da pena pelo próprio procedimento de apenamento; os condenados, culpados a priori, são sacrificados nas formas sancionadas do rito, do processo penal, a fim de auxiliar-nos a descarregar nosso pathos reativo, a fim de que possamos nos desvencilhar do castigo teológico e possamos expiar nossa própria culpa.

 Porém, nós mesmos, não nos salvamos, pelos ritos sacrificiais, pelo Juízo de Deus;  lembro-me de Il giorno del judizio, um belo texto de Agamben (2004) sobre um fotograma de Louis Daguerre, Boulevard du Temple, de 1838; nele, o Boulevard foi fotografado em horário de pico; massas de pessoas, carroças, passeantes, deveriam aparecer na imagem. Naquela época, porém, as máquinas fotográficas demandavam um longo tempo de exposição para captar as imagens. Por isso, nada aparece, senão um cenário urbano, imóvel; e ninguém aparece, à exceção de um vulto que permaneceu tempo suficiente parado, em pé, apoiado desconfortavelmente, tendo as botas engraxadas.

 O fotograma daguerreano permitiria entrever a fotografia como lugar de um Juízo Universal, segundo Agamben: a multidão toda estava presente, mas não se pode vê-la; o juízo refere-se apenas a uma vida, radicalmente pessoal, surpreendida naquele que talvez tenha sido o mais banal dos gestos – ter os sapatos engraxados. 

 E nós? Ora, nós somos apenas aquela multidão invisível, cujo julgamento não chegou ainda; porque o tempo atual é um tempo teológico, e há mais deus do que nunca, nossa presença móvel e esmaecida no fotograma daguerreano profetiza e anuncia, como quisera Agamben, que “no instante supremo, o homem, cada homem, fica entregue para sempre a seu gesto mais ínfimo e cotidiano” (Agamben, 2004). Então, o gesto mais irrelevante pesa e compreende a totalidade de uma existência. Assim, enquanto as multidões invisíveis fazem seus julgamentos, deus continua medindo os homens – com a distração negligente de quem vai ter as botas lustradas.

   

 

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 Fotograma: Boulevard du Temple, de Louis Daguerre (1838/1839)

 

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Murilo Duarte Costa Corrêa