Um pouco de luz By Ricardo Montero / Share 0 Tweet Em novembro de 1948, Mell Kilpatrick já tinha quase 47 anos quando começou a trabalhar como repórter fotográfico de um jornal em Orange County, periferia de Los Angeles. Sua especialidade: fotos de desastres de carro. Em novembro de 1948, Mell Kilpatrick já tinha quase 47 anos quando começou a trabalhar como repórter fotográfico de um jornal em Orange County, periferia de Los Angeles. Já havia sido frentista, caminhoneiro e mineiro quando migrou de Illinois para a Califórnia no final da década de 1920; pensava em ganhar a vida como trumpetista, mas tornou-se operador de projetor de filmes. Em meados da década de 1940, comprou sua primeira câmera e começou a fazer fotos por hobby. Sem qualquer treinamento, Mell contava com o olhar afiado de quem assistiu, a partir da sala de projeção, à centenas de películas de Hollywood. Rastreando as comunicações por rádio da polícia, por vezes Mell era o primeiro socorro a chegar a locais de ocorrências, envolvendo-se assim com os dramas documentados por sua pesada câmera Speed Graphic. Foi deste modo que ele estabeleceu laços de amizade com policiais e motoristas de ambulância; uma coisa leva a outra, e logo Mell estava fotografando para companhias de seguros e para a patrulha rodoviária. A paixão de Mell pela reportagem fotográfica fez dele uma pessoa popular entre policiais e motoristas de caminhão. Todos carregavam os telefones de Mell, que nunca hesitava ante um chamado, independentemente de hora ou local. Existem rumores de que Mell apareceu no Santa Ana Register sem ser convidado para oferecer seus préstimos profissionais. No jornal, começou ajudando na sala de revelação e logo se tornou o editor de fotografia. Mell Kilpatrick era um fotógrafo incansável e documentou o crescimento de Orange County nos anos de pós-guerra. Sobre os antigos laranjais foram construídas ruas e estradas, além da Disneyland (a pedido do próprio Walt Disney, Mell registrou toda a construção do parque temático). Surpreendente observar que a morte precoce de Mell aos 60 anos, em 1962, fez com que seu trabalho fosse rapidamente esquecido. Milhares de negativos ficaram trancados em seu laboratório por mais de 30 anos, até serem resgatados do limbo por sua neta Carlene. Do legado de Mell, a inegável constatação de que sua maior especialidade era um nicho dos mais estranhos: os desastres de automóvel. Daí a excelência de seu livro “Car Crashes and Other Sad Stories” (“Batidas de Carro e Outras Histórias Tristes”). As fotos, muitas delas noturnas, tem uma qualidade assombrosa. Em preto e branco, Mell se mostra um mestre do chiaroscuro. Além das fotos dos desastres, umas poucas fotos de corpos encontrados ou de assassinatos. As legenda são lacônicas: a precisa localização geográfica – uma esquina, uma estrada –, eventualmente seguida de descrições terríveis – “decapitação”, “três vítimas fatais”, “homem atropelado por caminhão”. Muito antes de J.G. Ballard dedicar seu famoso livro “Crash” à ousada fantasia de retratar as possibilidades eróticas dos acidentes de carro, Mell se valeu de uma habilidade cirúrgica para retratar as pobres vítimas dos inseguros veículos existentes à época. Corpos desfigurados, carros destroçados, membros amputados: em imagens chocantes, a carne se funde ao metal em fotogramas densos, que podem causar aos observadores a estranha sensação simultânea de horror e fascinação. A despeito da insuspeita qualidade artística dessas fotos, Mell retratou o lado trágico do amor que os norte-americanos nutrem por seus carros – isso em uma época em que o automóvel ainda não era um vilão ambiental ou muito menos se pensava em segurança veicular. “Car Crashes and Other Sad Stories” trata-se, pois, de um registro histórico (necrópsia?) de um tempo de otimismo, presente no livro incidentalmente em placas de propaganda, ainda que pela visão de Mell esse otimismo se mostre, na verdade, tão falso como irônico. Como exemplo, cito uma foto de página dupla em que um carro capotado passou por dentro de um outdoor, a propaganda de uma cerveja ainda legível (“It´s lucky when you live in America”, algo como “você é sortudo quando vive nos Estados Unidos”). Todas as fotos: Mell Kilpatrick, in "Car Crashes and Other Sad Stories", Taschen, 2000.