Photoshop: amor e ódio

Amor ou ódio. Reações antagônicas causadas pelo Photoshop, quase um sinônimo para tratamento digital de imagens. Dois livros de uma mesma série colocam lado a lado visões distintas quanto ao tratamento digital de imagens. Marcos Kim, com modéstia e simpatia, mostra os benefícios do processamento de imagens em livro caro porém útil. Drausio Tuzzolo, sem meias palavras, denota o preconceito de alguns contra esses procedimentos em livro de alto preço e limitada utilidade didática.

A revista Fotografe Melhor lançou uma coleção de livros sob sua grife. O preço assusta: noventa reais parecem injustificáveis, pois os livros parecem revistas com papel e capa um pouco mais pesados.

“Imagemaker: Fotografia Digital sem Segredos”, de Marcos Kim, é o livro mais interessante da série. No volume, Marcos mostra seus processos de produção e tratamento de imagens. O tom coloquial do autor por vezes nos faz esquecer que se trata de um livro técnico, especialmente útil para usuários do programa editor de imagens Adobe Photoshop. O detalhamento das explicações facilita o aprendizado do leitor.

Outro livro da série é “Como Fotografar Nu, Sensualidade & Fine Art”, de autoria do Drausio Tuzzolo. Além de ministrar cursos sobre o tema, o fotógrafo tem trabalhos publicados nas revistas Playboy, Vip e Sexy. Porém, ao contrário das explicações detalhadas de Marcos Kim, Drausio se limita a conselhos genéricos e a sucintos esquemas de luz utilizados em cada uma das fotos que ilustra a obra. Muito pouco, em especial se levarmos em conta o título pomposo do livro.

Por certo as técnicas de tratamento de imagem de Marcos Kim prestam-se mais a um livro de aprendizado do que métodos para fotos de nu artístico – até mesmo porque tratamento de imagem também se aplica a fotos de nu. Não é essa, porém, a maior diferença encontrada entre os livros. Difícil imaginar posturas mais díspares dos autores ante o ofício fotográfico, em especial porque o simpático Marcos Kim em momento algum assume uma posição de superioridade ante o leitor. E até por isso, não posso deixar de comentar a introdução do livro do Drausio Tuzzolo. Não deixa de ser surpreendente: como pode um fotógrafo conhecido ser tão… Bem, vamos às palavras de Drausio.

“Comecei minha carreira em fotografia em 1982, quando ainda não existiam as ferramentas práticas e rápidas que hoje a tecnologia digital oferece aos fotógrafos. Venho da escola da película, da época em que para você aprender, tinha que gastar muitos rolos de filmes, ser assistente de um grande fotógrafo, testar vários tipos de luzes e acessórios, trabalhar efeitos, usar muita criatividade e a direção, até conseguir os resultados desejados. Venho da escola em que o fotógrafo entregava a imagem finalizada com qualidade extrema sem nenhum recurso de Photoshop. Tinha que ter técnica e conhecimento, dominar a luz realmente.”

De cara, mais que se insinua o inexplicável preconceito de Drausio contra a fotografia digital. Inexplicável, pois o uso de meio digital também requer conhecimentos de luz e acessórios, direção de modelos, criatividade. Além desses conhecimentos básicos, o uso do meio digital requer conhecimentos específicos. Editores de imagens são softwares poderosos, desde que utilizados por mãos hábeis – afinal, o tratamento necessita de um operador, não é um processo automático. Mesmo cromos, ou “imagens em qualidade extrema sem nenhum recurso de Photoshop” poderiam ser lapidados – e hoje o são, em 100% das revistas dedicadas ao nu – com tratamento digital de imagem. E, óbvio, continua sendo necessário dominar a luz realmente, ao contrário do que afirma o autor em sua última frase.

“Quando comecei, fui estagiário e assistente no estúdio de fotografia da Agência DPZ (…) Era uma época em que havia muito glamour na fotografia e os fotógrafos tinham que ser bons de verdade.”

O “glamour” na fotografia morreu, dos anos 80 para cá? Os fotógrafos de hoje não precisam ser bons? Incompreensível para mim esse posicionamento. Em todas as épocas, existiram – necessário distingui-los – bons e maus fotógrafos. Por certo, a despeito dos lamentos de Drausio, muita gente – em 2008! – faz um trabalho inventivo e de qualidade.

“Todas as pessoas hoje em dia, que gostam de fotografar, que fazem algum curso, que compram uma câmera e saem fotografando – principalmente os ‘clichês’ já muito usados, como mendigos, miséria, pobreza, indigentes, além de paisagens e fotos sociais – se acham fotógrafos. Ainda não são. Na maioria, são meros apertadores de botão que, sem técnica nenhuma, com raras exceções, fazem uma regulagem automática no programa da máquina e conseguem fazer imagens como qualquer um pode fazer.”

Surpreendo-me quando um fotógrafo profissional deprecia a fotografia de cunho humanista e social, qualificando-a como clichê. No mais, usando esta mesma ótica míope, o maior de todos os clichês seria, sem dúvida, o nu artístico, tema que exaustivamente se repete desde o advento da fotografia. Quanto ao uso das câmeras em modo automático, tão criticado pelo Drausio, fica a questão: o que interessa, afinal, não é o resultado final? Eu penso assim, e acredito que existem diferentes modos de se chegar à excelência. Terry Richardson, por exemplo, frequentemente deixa de lado as câmeras profissionais e consegue resultados dos mais criativos usando câmeras compactas (que, como se sabe, oferecem limitados recursos de regulagem). Óbvio, porém, que pouquíssima gente consegue o mesmo resultado com essas maquininhas, pois Richardson é um dos mais brilhantes e criativos fotógrafos de sua geração.

“Costumo dizer hoje que encontramos vários decoradores de foto, que são aqueles que manipulam no Photoshop, e poucos arquitetos e engenheiros de imagem, que são aqueles que realizam com maestria as fotos das campanhas publicitárias nas grandes agências, os ensaios de moda de revistas importantes, as imagens sensuais de arte de extremo bom gosto e qualidade, feitas com uma iluminação perfeita, direção rigorosa de modelo, técnica apurada que só se consegue com muito trabalho e dedicação em pesquisa de luz e direção.”

Mais uma vez o autor se volta contra o tratamento digital de imagens, em um purismo que traz à lembrança a revolta dos pintores de outrora contra a então novíssima fotografia. Ele parece desconhecer que o Photoshop é uma ferramenta a mais no arsenal do fotógrafo, ou mesmo que tratamento de imagem algum consegue consertar uma imagem mal capturada. Processamento digital de imagem não dispensa exposição correta, escolha adequada da iluminação, boa direção de modelos.

“Ao contrário do comentário de um colega que diz que ‘ninguém sabe nada e muitos acham que sabem muito’, eu diria que muito poucos sabem muito e não param de aprender. E realmente muitos outros não sabem nada.”

Este infeliz comentário de Drausio resvala para a grosseria, ao se confrontar com a dedicatória em que Marcos Kim oferece seu livro ao amigo Jonas Chun. Segundo Marcos, “o Jonas me ensinou ainda que, no fundo, ninguém sabe nada (mas muitos acham que sabem demais).” Eu, por não ter idade nem paciência para estrelismo ou falta de modéstia, alinho-me ao pensamento de Marcos e Jonas. Complementando os pensamentos da dupla, eu diria que realmente são poucos os que detém o conhecimento e conservam a modéstia; poucos os que têm a consciência de que sempre há algo a aprender. Infelizmente, muitos são os que fazem um trabalho rigorosamente mediano e, vitimados pela soberba, colocam-se sobre um pedestal.

“O que me propus a mostrar nesse livro você não encontrará em nenhum curso de fotografia.”

Curiosa a afirmação, tanto pelo conteúdo do livro (meros esquemas de luz dos mais simples, intuitivamente imagináveis pelo exame das fotos) quanto pelos inúmeros workshops de nu ministrados pelo autor.

“Faço questão de afirmar, com muito orgulho, que 90% das imagens mostradas aqui não tem nenhum recurso de Photoshop.”

Ora, ora. Como se o uso parcimonioso do Photoshop desmerecesse alguma obra ou algum autor. Como se a totalidade das fotos hoje publicadas na Playboy, Vip e Sexy não passasse por tratamento digital. A Playboy, com justiça, dá crédito não apenas ao fotógrafo, mas também ao responsável pelo processamento. Voltando às fotos do Drausio: fazendo as contas, 10% delas se beneficiaram do Photoshop, ao passo que os 90% restantes deixaram de contar com o recurso – o que sem dúvida poderia melhorá-las.

Enfim, a introdução do livro do Drausio, que ocupa uma única página de um livros com muitas ilustrações e poucas palavras, causou-me espanto, ainda que pelos motivos errados. Não entendo esse preconceito de alguns, quase todos oriundos dos processos físico-químicos de registro, contra a fotografia digital e contra o processamento digital de imagens. Até porque é inútil remar contra a corrente: hoje, mesmo um cromo de qualidade, assinado por um badalado profissional, obrigatoriamente será digitalizado e tratado antes da publicação em livro ou revista. Atualmente, todo fotógrafo sério precisa se familiarizar com ferramentas de edição; a cognição do processo de tratamento traz para as mãos do fotógrafo, profissional ou amador, o completo controle sobre o fluxo de trabalho, desde a captura até a impressão.

Quanto às fotos do Drausio que ilustram o livro, minha opinião é de que são corretas tecnicamente e que casam perfeitamente com as linhas editoriais das revistas supracitadas. Porém, inevitável constatar que falta a elas o toque de gênio que faz a diferença entre um trabalho correto e um trabalho realmente inventivo. Ainda que repletas de lugares-comuns, essas fotos atendem aos desejos e necessidades de seus clientes em uma tipo de fotografia em que é difícil escapar dos clichês. Comparem Drausio, por exemplo, com o Stan Schutze, que faz um trabalho primoroso, tanto em técnica quanto em criatividade e humor (o endereço do Stan, o melhor fotógrafo de nus que conheço, é www.pbase.com/schutze/).

Por isso tudo, acho que esse livro do Drausio não vale os R$90 que custa. Pelo preço pedido, compra-se pelo correio livros estrangeiros mais baratos, melhor detalhados e com mais fotos em muito mais páginas. Outra alternativa de custo similar é a aquisição de oito edições da Playboy, um total de 24 ensaios, com a vantagem de se ver o nu feminino sob a ótica de vários fotógrafos.

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Ricardo Montero