Anabasis

mapa do interior de São Paulo

O interior não é o mesmo país das capitais.

Eu venho de uma cidade do interior de São Paulo. É uma cidade próspera, que se orgulha de sua vocação tecnológica, como se costuma dizer. De acordo com os dados de 2017, é a 19ª cidade mais rica do Brasil. Seu IDH é de 0,807, considerado pelo IBGE como muito alto. É muito arborizada, algo contrastante com a metrópole paulistana, que é cinza sobre cinza o tempo todo em todo lugar. Ela tem se adaptado bem às mudanças de matriz econômica: de cidade agrária, à maneira das Cidades mortas, de Monteiro Lobato, passou a cidade industrial na metade do século XX, e hoje define-se como prestadora de serviços. Fica a uma hora e vinte minutos da cidade de São Paulo.

A despeito de tanta pujança, o espírito de cidade pequena encarna nos corpos dos homens e mulheres de bem. Lá, em 2018, Jair Bolsonaro teve 279.797 votos, 76,21% do total de votos válidos.

Avançar pelo interior do país é recuar no tempo. Parece outro país, em vários sentidos.

Há contradições profundas, tão profundas que não são sequer percebidas pelo homem de bem interiorano. São como o envelope desaparecido de A carta roubada, de Poe: invisíveis porque estão sob a vista de todos.

O poder tem dono: as famílias tradicionais e seus agregados. Funcionam em torno delas e para elas. As mudanças ocorrem lentamente, seguem o ritmo das lesmas e dos bichos preguiça. Tudo muito lento, sempre respeitando-se a primazia e o patrimônio dessas famílias que nomeiam ruas, praças e avenidas.

Por certo que há alguma rivalidade entre essas famílias. Nada que não se resolva com a alternância entre elas no poder. Acordos se dão de maneira tácita, sem nenhuma publicidade, na escuridão que gera os vermes, os fungos e os parasitas.

Tudo lento, tudo opaco, tudo não dito. Como no livro de Cida Bento: é o pacto da branquitude.

Um ex-prefeito, hoje candidato a vice-governador, comemorou sua vitória com champagne Cristal e charutos Cohiba. O vídeo dele e de seus amigos celebrando viralizou. Lembrou-me algo de quando eu era criança, quando ouvi, num clube tradicional da cidade, o prefeito comentar com os amigos que não aguentava mais apertar mão de pé-rachado, que era o modo como ele se referia aos pobres. Todos riram muito. Alguns desses amigos do prefeito eram pais dos meus amiguinhos de escola.

Nada é muito claro nem muito puro nas cidades do interior. Não é raro que aconteça de um militante de esquerda trabalhe no gabinete de um vereador de extrema direita. Ou vice-versa. Que um jovem rebelde, moderno, cheio de projetos, num dado momento siga os conselhos do pai careta e maçom e entre na irmandade, por exemplo, para que as portas se abram com mais facilidade e seus projetos, ligeiramente adaptados, possam se concretizar. E há muitas e outras histórias escabrosas que se contam à boca pequena, com cuidado, para não melindrar os que mandam e desmandam.

Tudo na minha cidade é novo e é moderno. Menos as relações sociais. Aí, na base, o que se ouve é a voz do Brasil arcaico, rústico, reacionário, escravocrata. Há cavalcantis e há cavalgados. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Há quem fume Cohibas Behike e beba uísque The Macallan como se fosse água de pote, e há quem limpe a sujeira e a bagunça da festa de olho aberto e boca fechada, como manda o figurino.

Na minha cidade que se vê moderna, Bolsonaro teve 76,21% do total de votos válidos.

E a escuridão da noite veio a cobrir os olhos do Brasil.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.

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