Pintura como ato de resistência


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Aceleramos o tempo. Nem percebemos, mas fazemos isso ininterruptamente. Lembro de um livro que li quando criança, de Michael Ende, no qual as pessoas faziam cada vez mais coisas para poupar tempo, e esse tempo lhes era roubado por homens cinzas. De fato, é mais ou menos assim que as coisas funcionam. Criamos um cronograma preciso de nossos afazeres, de maneira que nosso dia “renda”. E praguejamos quando vemos a economia miserável que resulta de tal rendimento. Os homens cinzas são muito eficientes.

Fazemos tanta coisa durante os nossos dias que nossa percepção do presente fica comprometida. Ficar comprometida é um eufemismo: a maioria de nós passa pela vida experimentando ou o passado ou o futuro. No presente, essa coisa tão difícil de se definir, jamais.

A vida se dá no presente, se concordamos com Schopenhauer, nunca no passado ou no futuro. Daí que a desperdiçamos completamente, vivendo num mundo de memórias falecidas ou num mundo de projetos vindouros. E o tempo, o nosso tempo, se esvai desperdiçado.

Pensei nessas coisas ao refletir sobre a pintura. Ia escrever sobre minhas dúvidas sobre a sua pertinência nos nossos dias. Num cotidiano saturado de imagens instantâneas, multiplicadas ao (quase) infinito, descartáveis, irrelevantes, qual a importância de uma superfície plana coberta de tinta, usualmente pendurada na parede? Um pedaço de pano esticado, o qual, com o passar do tempo, se tornará quase invisível, indistinto da tinta que cobre a parede. Vemos centenas, milhares de imagens todos os dias. E, no entanto, esse “ver” é quase como um não-ver: nos demoramos por uma mísera fração de segundo numa imagem, e logo passamos para a seguinte. E para a seguinte, e assim por diante, não-vendo nenhuma das imagens que supostamente estaríamos a ver.

A pintura, num contexto como esse, pode ser compreendida como uma relíquia embolorada do século XIX. Ela nada tem a dizer para o século XXI, muito menos para um(a) jovem da geração “milênio”. É artefato arqueológico para ser conservado em museu, tão relevante quanto um caco de cerâmica do século XVIII. Na melhor, ou pior, das hipóteses, um passatempo excêntrico de colecionadores milionários.

Prefiro ver a pintura como um ato de resistência. Um absurdo, um anacronismo que nos faz lembrar que também somos, cada um de nós, enquanto indivíduos, um absurdo e um anacronismo. Uma pintura, uma única pintura, pode levar meses, anos, até ser completada. Uma imagem laboriosa, única. Um objeto curioso: a manifestação reificada da subjetividade do pintor (não no sentido marxista, é claro). Mais do que a fotografia, é um dos modos possíveis de comunicação com o outro. Demanda tempo para se fazer uma pintura, demanda tempo para se apreciá-la. É natural que os homens cinzas considerem tudo isso uma perda de tempo, um desperdício de capital.

Fruir de uma pintura é também um modo de estar no presente, e esse é um de seus aspectos mágicos. Uma pintura é sempre um instante do tempo que foi preservado, e que torna a ser o presente no momento em que estamos diante dela. É um ato de magia: o tempo que foi se faz presente numa superfície coberta de cores numa determinada ordem.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.