Kurt Vonnegut escreveu: o planeta quer se livrar de nós.
Individualmente, não somos grande coisa; em massa, porém, somos uma doença fatal, um câncer particularmente agressivo. Vivemos em tempos interessantes, que é um outro modo de dizer que a desgraça se instalou. No mundo e, de maneira amplificada, no Brasil. No momento em que escrevo essas palavras, o planeta é assolado pela guerra (várias, escolha a preferida), pela peste, pela fome, e, claro, pela morte (só pela Covid-19, quase 700.000 mortos no Brasil, graças ao plano de extermínio do facínora que ocupa a presidência). Apocalipse now.
Hoje, um dia de inverno, fez quase 30° aqui em São Paulo. No entardecer que parece de Marte, uma névoa marrom paira há dias entre a terra e o céu paulistanos: partículas de poluição suspensas no ar. Quem poderia dizer que o refrão de uma letra de uma banda de thrash metal dos anos 80s – Nuclear Assault – passaria de profecia a fato: Look upon the world you knew / And say goodbye, it dies with you / Those who live when we are dead / Will curse our names, they ‘ve inherited Hell[1].
O planeta fará bem em se livrar de nós. Lembram-se das imagens de animais passeando por ruas desertas nas cidades em lockdown, logo nos inícios da pandemia, retomando o espaço que um dia lhes foi roubado?
Quem é o supérfluo? A natureza não precisa de nós, ela sobrevive a despeito de nós, que nos esforçamos para destruí-la. Bico calado, muito cuidado, que o homem vem aí. O homem vem aí.
Na página 156 do livro Conquista do inútil, de Werner Herzog, lê-se:
Em um ponto acima do pongo de Mainique, onde existe outro mundo inalcançável e desconhecido, um menino campa, de 14 anos, assim me contaram, fugiu de casa levando junto a irmã de 3 anos. Ele disse que queria partilhar com ela a liberdade, o desconhecido abaixo das corredeiras. Eles passaram por aqui em uma balsa improvisada que mal dava para carregar os dois, passaram o pongo, depois o Timpia, o Camisea e o rio Picha. Só pararam em Sepahua. Ali sua história se perdeu.
Invejo esse menino. Seu mundo é outro que não o meu. No ato desse menino e sua irmã há um potencial de mundo vivo, real. Mas, repare: Herzog anotou essas palavras em seu diário em 5 de abril de 1981. Hoje, um menino que quisesse partilhar a liberdade com sua irmã percorrendo o rio Camisea certamente teria seu caminho cortado por madeireiros, por traficantes, por garimpeiros: madeira para construir a mesa grifada que adorna uma fabulosa casa de praia em Calanque d’En Vau, na Provence, cocaína para abastecer as noites efervescentes de Barcelona e o ouro dos anéis e colares do DJ guest internacional que anima essa festa toda.
Kurt Vonnegut escreveu: o planeta quer se livrar de nós.
O planeta tem que se livrar de nós.
[1] Tradução livre: Olhe para o mundo que você conheceu / e diga adeus, ele morre com você / Aqueles que viverão quando estivermos mortos / Amaldiçoarão nossos nomes, eles herdaram o Inferno.
Me lembrei de Pentti Linkola, ecologista profundo que culpava os humanos (não sem razão) pela degradação contínua do ambiente. Ele defendia o rápido declínio da população (inclusive com suicídios voluntários) como forma de combater os problemas mais comuns atribuídos à superpopulação.
A figura era muito polêmica, e acreditava que a democracia era um erro, e que preferia ditaduras e que somente a mudança radical poderia prevenir o colapso ecológico.
Uma das citações mais famosas dele foi:
“If there were a button I could press, I would sacrifice myself without hesitating, if it meant millions of people would die.”
Agora, quando perguntaram a ele porque ele não tinha se tornado um terrorista, ele disse que lhe faltava a habilidade e a coragem.
Do meu próprio ponto de vista, eu concordo que o planeta tem muitas razões para querer se livrar de nós. Como humanista, anarquista e um eterno otimista, acredito em um “ponto de mutação”, alguma “virada do bombeiro” (história mítica familiar, kkkk) que coloque a humanidade dentro de uma transformação possível, rumo a uma sociedade e mundo melhores… Ou quem sabe, surgirá alguma sub-espécie/nova espécie (quem poderia negar) que aponte soluções melhores e que nos conduza/convença/subjugue/eduque/gamifique (?) rumo a escolhas mais apropriadas para nós mesmos e para o mundo material que conhecemos.
Em última instância, não podemos deixar de lado o papel que o espiritual tem nesta transformação. Mas este tópico é assunto para outro café ou mesa de bar… Vou lá que meu trem de volta me espera.
Rafael: talvez a crise ambiental que vivemos hoje seja o teste de fogo das democracias no século XXI. Porque não há possibilidade de erro, e mesmo se formos capazes de tomar medidas drásticas no combate ao aquecimento global, boa parte do estrago já foi feito. Compreendo as posições de Pentti Linkola. Só que – e me perdoe a redundância – num problema de escala global, as soluções terão de ser globais. E imagine: há, hoje, condições de EUA, China, Rússia (só prá ficar nas potências econômicas e militares) se sentarem para discutir com a urgência necessária a questão do meio ambiente? Acho até mais provável que uma delas faça uma besteira e desencadeie a tal “mútua destruição assegurada”…
Às vezes, fico pensando no tal paradoxo de Fermi (o “onde está todo mundo?” no universo): será que não encontramos sinais de vida inteligente por aí simplesmente porque as civilizações chegam até um certo ponto e então se destroem? É uma perspectiva melancólica. Estamos divididos em centenas de países, cada qual com sua cultura, suas pessoas, seus problemas, seus amores e seus ódios. Mas o planeta é um só…
Costumo ser pessimista em curto, médio e longo prazo, Rafael. Mas, subitamente, a longuíssimo prazo passo a ser muito otimista: de algum modo, nessa escala que não é a da duração das nossas vidas (e nem a dos nossos filhos e netos), a espécie humana consegue dar um jeito nas coisas. Como diz o Lulu Santos, progredimos a passo de formiga e sem vontade. Esses 4 anos com essa malta de assassinos no poder, sua boçalidade e sua capacidade de destruição me deixaram um pouco abalado até nesse prazo mais dilatado. Mas, se comecei o texto com Chico, termino com o recado do Chico prá essa gente fardada que não tem o que fazer: apesar de você, amanhã há de ser outro dia!