Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet As campanhas militares contra Canudos foram a resposta do Estado brasileiro àquilo que os jornais das capitais expunham como sendo uma forte ameaça à República recém instituída. Seriam ideologicamente fanáticos, monarquistas radicais muito bem organizados, muito bem armados, operando sob a influência do estrangeiro com interesses escusos. Euclides da Cunha parte para o local do conflito com esse tipo de visão. Chega após o fim dos combates, e o que encontra é muito diferente do que se pensa e se imagina na metrópole. Ali só há miséria e desespero. E não hesita em nomear a ação do exército: crime, massacre. Não havia influência do estrangeiro, não havia ameaça à República. Havia gente miserável, sem perspectivas e abandonada pelo Estado, tentando sobreviver de alguma forma, tentando resistir ao clima, à geografia e, mais do que tudo, ao Estado monstruoso e vampiresco que a todos suga sem devolver nada em troca. Veja-se uma das fotos que existem da campanha, feitas por Flávio de Barros, fotógrafo de quem não sabemos quase nada, a não ser que era o auto-entitulado fotógrafo expedicionário da campanha do exército. À parte os uniformes das tropas do governo, sempre sobrando nos corpos mirrados dos soldados, o tipo físico dos combatentes do governo e o dos chamados insurrectos de Antônio Conselheiro é o mesmo, são indistinguíveis. Os soldados são igualmente pobres, cuja única função é matar outros pobres a mando do Estado. Na foto que é intitulada Um jagunço preso (1897), o segundo soldado tem as calças esfarrapadas e o rifle remendado. Os que estão à direita na foto estão descalços. O dito jagunço está melhor aparamentado. Não será ironia que soldado e sobrevivente estejam juntos no retorno à capital da República, um em busca de salários que nunca foram pagos e outro em busca de qualquer coisa que lhe permita sobreviver. Serão tratados como nada pelas autoridades da República. E juntos, soldado e sobrevivente fundarão a primeira favela no morro da Providência, à espera de alguma reparação que nunca virá. São iguais, deserdados, párias, sem outra utilidade que não a de ser carne barata para uso diverso do Estado e seus donos. Euclides da Cunha, com todas as limitações e preconceitos inerentes a um homem brasileiro nascido em 1866, não tardou a perceber que ali, nos sertões não havia Estado, e que quando este ali chegava, chegava portando rifles e disparando canhões, seu quinhão de modernidade remetido aos sertanejos. Não havia saúde, não havia educação, não havia saneamento básico, não havia infraestrutura, não havia civilização, não havia coisa alguma que revelasse sequer a presença do ser humano. E na capital, no Rio de Janeiro, apavoravam-se com os relatos de hordas de perigosos baderneiros sem lei, sem fé, que esperavam o momento propício para desencadear a revolução monarquista que derrubaria a República. Manda o exército, manda o Bope, manda o Caveirão, intervenção militar já, gritavam os brasileiros cidadãos de bem. Canudos não termina, o Contestado não termina, a Escravidão não termina. Vão sendo arrastadas como mortalhas que cheiram mal e que nunca são enterradas. Seguem conosco e nos alucinam, nos enlouquecem.