Cézanne

A oposição entre forma e conteúdo é a mais pedestre das questões da arte. Começando pelo fato de que é uma questão falsa: essa oposição não existe.

O pior comentário que se possa ouvir inclui sempre um “essa obra não tem conteúdo”. Rara leitora, raro leitor: desconfia da qualidade argumentativa de quem insere essa vacuidade na própria retórica, pois é um indício claro de pensamento convencional.

Forma é conteúdo. Ou, o conteúdo manifesta-se na forma, que é um outro modo de afirmar-se a mesma coisa.

O mais revolucionário dos pintores pintava maçãs, jarros, toalhas de mesa brancas, uma montanha, a mulher, o filho, alguns amigos e conhecidos. Foi mais longe do que todos, no entanto, fazendo uso desses motivos aparentemente banais.

Cézanne recriou o mundo na superfície da tela. Quase nenhum outro pintor poderá dizer o mesmo.

Através da visão, notamos a presença das coisas. A existência própria das coisas. Cézanne conseguiu transpor essa presença para as telas. Outros o fizeram, mas, durante o processo (um processo de fixação), extirparam a vitalidade das coisas do mundo. Em Cézanne, não. A vitalidade, que é um modo envergonhado de me referir à vida, continua intacta.

Pintura plena de thereness, termo que traduzido fica ainda pior: aí-seidade. Melhor dizer que na pintura de Cézanne as coisas fazem se sentir com seu peso, com sua profundidade de posição. É o mundo refeito através da atenção obstinada que Cézanne dedica às coisas. Cada toque do pincel carrega espaço, tempo, densidade e o efeito da gravidade sobre essas grandezas. Porque na sua pintura as coisas tem peso. Através do peso, determinamos posições, distâncias, estabelecemos relações. Vemos uma árvore numa paisagem, e vemos e sentimos muito mais. Há vento que agita a folhagem, e o vento é frio e seco. A luz é a luz do fim da tarde, e vemos essa árvore nessa paisagem em nosso caminho de volta para casa, jamais durante a ida. Cézanne captura as coisas imersas no momento, e as reconstrói na tela.

Cézanne mergulhava sur le motif, com seriedade e concentração inigualáveis. Daí a frase memorável “sou a consciência da paisagem que se pensa em mim”. Entremeava longas sessões de pintura com visitas ao Louvre para resolver problemas específicos. Deixa dois espaços em branco na mão de um retratado: precisa ir ao museu verificar com os velhos mestres a possível resolução desse impasse. Afirma não poder preencher aquele espaço em branco, pois se o fizesse incorretamente, seria obrigado a modificar todo o quadro em função dessa pincelada duvidosa.

Após Cézanne, multiplicam-se os caminhos, as abordagens possíveis da pintura. Em quase todos esses caminhos, Cézanne está na sua origem. Jamais, no entanto, ela foi tão plena e tão revolucionária.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.