Ronda Noturna 2.0 By Marcos Schmidt / Share 0 Tweet “Um dos maiores homens da Idade Média, o mestre Johann Tauler, conta a história de um ermitão a quem um visitante inoportuno pediu um objeto que estava em sua cela. O ermitão teve de entrar para buscar o objeto. Mas ao entrar esqueceu qual era, pois a imagem das coisas exteriores não conseguia gravar-se em sua mente. Então ele saiu e pediu ao visitante que lhe repetisse o que queria. Este renovou o pedido. O solitário entrou novamente, mas antes de pegar o objeto já esquecera qual era. Depois de muitas tentativas, viu-se obrigado a dizer ao importuno: – Entre e procure você mesmo o que deseja, pois eu não consigo conservar vossa imagem o suficiente para fazer o que me pede.” Era um homem de rara felicidade, o ermitão do conto de Leon Bloy. Diferentemente dele, conservamos demais as imagens das coisas exteriores. Claro que o contrário disso é algo como uma impossibilidade, se a frase for interpretada literalmente. Mas esse não deve ser o caso. Conservamos as imagens e os sons do mundo que nos rodeia até a neurose. E acrescente-se a isso o novo mundo virtual, insidioso e invasivo como o mundo real jamais fora. A vida está na mente. Os mundos, o real e o virtual, existem apenas na mente. Experimentamos suas projeções e seus reflexos, constantemente distorcidos. Mas essas mesmas projeções e esses mesmos reflexos ficam marcados em nossa psique como se gravados em pedra. Aumentados, distorcidos, desfigurados, monstruosos. Às vezes, perpétuos, como um crime sem remissão. O mesmo Leon Bloy escreve, sobre o misterioso versículo I Coríntios 13:12: “assustadora ideia de Joana sobre o texto per speculum in aenigmate: os prazeres deste mundo seriam os tormentos do inferno, vistos pelo avesso, num espelho.” Na interpretação de Bloy, São Paulo seria um lacaniano avant la lettre: gozamos com nossos tormentos, sofremos com nossa felicidade.