A cidade bruta


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São Paulo é a brutalidade. Os paulistanos e os que moram na cidade de São Paulo são brutais. Como poderia ser diferente?

A arquitetura é a mais fundamental das artes. Ela é nosso hábito: ao contrário de todas as outras formas de arte, nós a vivenciamos ininterruptamente. É um código quase invisível, que, também de maneira ininterrupta, cuidamos de decifrar com maior ou menor sucesso. E ela nos molda, influencia nossa têmpera, nossos humores, nossas ações.

São Paulo é inóspita. Saia o indivíduo pelo centro da cidade num dia de calor. Rapidamente perceberá que a urbe o rejeita. Não há sombra, não há árvores, não há abrigo do calor. Há asfalto, carros (quase) em movimento, fumaça, concreto, grades e muito, mas muito calor, multiplicado pela arquitetura inumana. Os refúgios são privados, como quase tudo em São Paulo. Pode semelhante arremedo de urbanismo exercer alguma influência positiva em tal indivíduo?

O paulista é o bandeirante: o tipo corajoso e bestial que desbravou os interiores do Brasil caçando presas — índios, por óbvio. Rude no trato, isolado, fechado, solitário. Cobiçoso. Acostumado ao silêncio e aos parcos diálogos que se resumem a ordens. Escreve o velho historiador Vernhagen, sobre esses míticos patriarcas das famílias quatrocentonas: melhor esquecê-los, melhor não falar deles – incapaz que foi de encontrar algum atributo mais ou menos nobre nos antepassados da casta paulistana orgulhosa sabe-se lá do quê.

Pois esse espírito ávido manifesta-se na capital paulista com rara exuberância. Cresce, como sempre cresceu, de maneira desordenada, tendo como parâmetro único a especulação imobiliária. Nas palavras do arquiteto Carlos A. C. Lemos: “foi o especulador que urbanizou a Várzea do Carmo e construiu centenas de casas populares nos seus flancos; foi o especulador que verticalizou o centro comercial; foi o especulador que sempre pressionou a Câmara de Vereadores para alterar leis referentes ao uso do solo, desde o tempo do Império. Certamente foi a especulação que revogou as posturas pioneiras (…) referentes aos critérios de insolação de residências, que estavam atrapalhando sobremaneira a disseminação de apartamentos nos exíguos lotes urbanos da velha cidade” (Da taipa ao concreto). Como resultado, o deslocamento urbano torna-se penoso, difícil. O transporte público, sempre precário, não consegue dar conta do número indiano de usuários. Não bastasse sua ineficiência, o poder público tem por tradição privilegiar o automóvel, que circula, ou tenta circular, invariavelmente com um, no máximo dois ocupantes.

Os novos prédios, nem tão novos assim, já que podemos perceber o fenômeno desde os anos 80s, se pretendem invisíveis, pretendem-se à parte. Não querem fazer parte da cidade, estão recuados — acuados, de fato: são um refúgio, cidadelas plantadas em meio hostil. Não deixa de ser uma ironia, dado que um número gigantesco de pessoas pobres ou excluídas também são automaticamente tornadas invisíveis, passando à visibilidade apenas quando nos incomodam, que é quando voltam a existir.

Também são refúgios os condomínios fechados, essa abominação antissocial que infesta as cidades brasileiras. Sem esquecer das ruas de bairros nobres ilegalmente fechadas à circulação, com guaritas e seguranças zelando pelo sono inquieto do andar de cima. Nesses locais, o direito de ir e vir em áreas públicas é restringido. Não é o mesmo que ocorre em bairros pobres da periferia tomados pelo tráfico e pelo PCC?

Enfim, a brutalidade que nos habita é manifesta na arquitetura medonha que nos cerca.

A cidade é cada um de nós. Ela é nossa exteriorização: seus caminhos são os caminhos que percorremos dentro de nós mesmos, na busca de soluções ou de problemas. Se vedamos alguns desses caminhos, é porque vedamos certas avenidas da nossa psique: temos medo de percorrê-las, pois podem nos machucar profundamente. E podem exibir uma feiura e uma brutalidade que não supomos dentro de nós.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.