Sobre relativismos e o machismo do bem

No chamado debate público – seja na mídia tradicional, redes sociais, youtube etc., é muito comum vermos opiniões um tanto quanto confusas (para dizer o mínimo).

Entendo que a confusão venha pela falta de rigor e entendimento de conceitos, fundamentais para se seguir em qualquer debate ou discussão. Quero aqui falar a respeito de um longo debate filosófico entre duas posições de pensamento que ao longo da história das idéias se digladiam: o relativismo e o absolutismo.

Quando dizemos que alguma coisa é absoluta, isso significa que valores como certo e errado, o são em qualquer época ou situação. Um absolutista é alguém que defende uma determinada posição sempre – exemplos: matar é sempre errado; roubar é sempre errado, ajudar o próximo é sempre certo etc.

Já o relativismo trabalha entendendo que esses mesmos valores (certo e errado por exemplo) dependem de cada situação concreta e não podem ser tomados como peremptórios como querem os absolutistas.

Um relativista argumentaria por exemplo que em alguns casos roubar pode ser certo – como no furto famélico (furtar ou roubar para comer) ou em certa situações o aborto pode ser certo (estupro e risco de vida a mãe). A situação condiciona a ação e não o contrário – onde um padrão de conduta pré-existe as ações e devemos apenas segui-los.

Mark Rowlands argumenta em seu livro “Tudo que sei aprendi com a TV”, que o que difere sociedades modernas de pré-modernas é justamente esse fato: as modernas são relativistas e as pré-modernas absolutistas (por isso ficamos no ocidente tão espantados como certas atitudes no mundo islâmico por exemplo).

Entretanto, a coisa começa a complicar quando nos perguntamos: tudo é relativo ou tudo é absoluto?

Ou ainda podemos perguntar em caso de resposta “nem um e nem outro” – que tipo coisas ou assuntos devem ser tratados absolutamente e quais relativamente?

E é aí que a maioria dos formadores de opinião escorrega.

Irei usar aqui uma história fictícia para explicar o ponto onde estou querendo chegar: uma garota de uns 25 anos está em uma festa. Ela bebe e dança com suas amigas quando é abordada por um homem e um papo começa. Ele investe, ela sorri. Ele a leva para um canto da boate e uma investida mais pesada acontece. A garota é lavada contra sua vontade para um recinto mais vazio e é violentada (estuprada).

O fato: um homem estuprou uma mulher!

A mídia divulgou o ocorrido e os ávidos opinadores logo trataram de postar, tuitar, publicar e falar suas opiniões a respeito: o estupro é inaceitável, é um crime hediondo e o culpado deve ser preso!

No dia seguinte, a mesma mídia divulga uma informação a respeito da moça (vítima): era uma jovem estudante de ciências sociais, simpática ao PSOL e apreciadora de maconha.

Isso é o suficiente para uma certa direita dizer: há, mas tinha que ser né, no mínimo deveria estar drogada, com roupas curtas e provocantes e deu mole e por isso aconteceu o que aconteceu!

Isso é ou não é um relativismo sórdido?

Agora esqueça essa notícia do dia seguinte vista acima e considere essa outra informação: era uma jovem estudante de ciências contábeis, apreciadora de sertanejo universitário e defensora de Jair Bolsonaro.

Isso é o suficiente para uma certa esquerda dizer: há, mas tinha que ser né, bolsominion; fora que pouca desgraça com fascista é pouco!

Isso é ou não é um relativismo sórdido?

Esse modus operandi não é exclusividade dessa ou daquela posição política, mas sim de pessoas estúpidas.

Claramente o aspecto ideológico é colocado em primeiro plano frente a questões muito mais importantes; se de esquerda ou de direita, bolsonarista ou psolista, antes de tudo ela é uma mulher e antes mesmo disso, um ser humano. Por isso eu rechaço como demagogismo barato os discursos identitários da esquerda e o moralismo da direita.

No fundo não passam (em sua maioria) de escravos de ideologias, que preferem a incoerência a admitir equívocos em suas agendas.

Esse é um típico caso do que eu chamo de estupro do bem!

Existe também a violência do bem: a morte de Marielle Franco nem foi assim tão grave, afinal de contas né, ela era de esquerda – diria um radical de direita (e muitos até disseram). E por que não dizer o mesmo da facada de Bolsonaro: teria sido uma boa facada se tivesse o matado – diria um radical de esquerda (e muitos até disseram).

Você pode (e até deve se quiser) discordar do pensamento de Marielle ou de Bolsonaro (ou meu ou de quem for), mas mortes e atentados não podem ser comemorados ou até abafados pelo crivo ideológico.

E agora eu chego onde eu queria chegar: no vídeo do humorístico Porta dos Fundos.

O Porta postou em seu canal oficial no youtube um vídeo mostrando uma personagem chamada Yollanda, que acabara de se eleger vereadora em Curitiba-PR. No vídeo a personagem é do partido novo e teria ganho a eleição em troca de favores sexuais.

Muitos ao verem o vídeo o associaram a Indiara Barbosa, eleita vereadora em Curitiba-PR e do partido novo.

O partido novo é um partido ligado à direita liberal – posição ideológica contrária a da maioria dos integrantes do Porta dos Fundos.

Mesmo que eles tenham tirado o vídeo do canal e emitido uma nota de esclarecimento, concordam que o vídeo para ir ao ar ele precisa ser: roteirizado, debatido, aprovado, testado, gravado e postado? Essas etapas demoram algum tempo certo?

O mínimo de tempo necessário para terem percebido o inerente machismo de tal esquete.

Nas internas eles devem ter rido e gostado (não posso afirmar) – se não nem teriam aprovado e filmado a peça.

É isso que eu chamo de machismo do bem!

Qual a diferença disso para a seguinte frase de Bolsonaro: eu fraquejei ao ter uma filha, depois de ter quatro homens (KKKKKKK – risadas do próprio). À esquerda, os militantes e mesmo o Porta dos Fundos certamente acham (e acharam a época) a frase machista – e é, mas esse aí não pode, só o nosso pode!

Isso me lembra muito a frase famosa de Sartre: o inferno são os outros! E é mesmo, a direita é o inferno da esquerda e a esquerda é o inferno da direita e ambas não conseguem ver que são apenas lados diferentes (mas nem tão diferentes assim) de uma mesma e fanática moeda ideológica.

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Para ampliar a discussão:

Metaethical Subjectivism – Richard Double.

Realism and Truth – Michael Devitt.

Principia Ethica – G.E. Moore

Absolutism and Relativism in Ethics – Shia Moser

About the author

Marlon Marques Da Silva

Humano, falho, cético e apenas tentando... Sou tio, fã de Engenheiros do Hawaii, torço pro Santos F.C. e não me iludo com políticos e religiosos e qualquer discurso de salvação. Estudei História, Filosofia, Arte, Política, Teologia e mais um monte de coisas. Tenho minha opinião e embora possa mudar, costumo ser aguerrido (muito) sobre ela e geralmente costumo ir na contra-mão da doxa.