Panta Rhei-Poesiasofia By Paulo Vinícius / Share 0 Tweet Vivemos em situação de guerra, diariamente, embate entre humanos. De um lado uma multidão de bilhões de músculos e cérebros submetidos a uma situação de exploração diária, vivendo como se o objetivo de viver fosse apenas sobreviver, em esforço constante, fazendo o desagradável ou o cansativo, o entediante, o que é lucro ou prazer de outros. Do outro lado do tabuleiro uma minoria de animais da mesma espécie, mas, com mais cobiça e “sorte”; um pequeno grupo, que vive como “se semideuses fossem”, flutuando no luxo, usufruindo de todos os prazeres e comodidades que o “papel sagrado” pode oferecer. Entre os primeiros, que são em número maior, mas, que submetem-se aos desejos dos segundos, estão ainda os mais miseráveis, os que sobrevivem do lixo da máquina. O mundo humano é doente, de uma doença que afeta a própria natureza, já que da natureza a “humana espécie” é manifestação. Triste espécie primata que cria armadilhas para si mesma. Escutando a cidade, ainda boa parte acordada, a cidade que suava frio, a cidade cinza, cercada de rochas agarradas por árvores de verde escuro, que ao longe observavam, mudas. A cidade aglomeração de mentes atormentadas pelo barulho dos “dias atuais”. Ainda tentava lembrar “momentos em que havia sido feliz”. Bebia mais um gole do roxo vinho colonial, era como se mastigasse pequenas uvas muito escuras e azedas, com leve toque dos doces lábios de jovens ninfas com morangos em suas bocas. O vinho deixava um gosto forte. Era um ótimo vinho, produto sublime da própria terra absorvida e sublimada pela videira abraçada pelo Sol, beijada pelo vento e banhada pelas lágrimas de grandes nuvens de uma serena tempestade. Em sua mente imagens vagavam, passavam, como em uma intensa corrente de luzes e sombras. Sentiu sono e deitou no sofá ao lado da poltrona onde, até então, meditava sobre um livro de folhas comidas por traças. Adormeceu. Um cenário escuro de começo de noite, momento do dia em que a estrela próxima só alcança com seus mais finos e longos tentáculos, formando uma linha de um dourado muito pálido no horizonte, uma linha que vai sendo consumida pelo azul escuro acinzentado da noite, enquanto as luzes artificiais dos postes já vão aparecendo e iluminando a calçada de pedras maltratadas e os prédios sem beleza (poleiros humanos), as plantas e a fachada da casa branca e antiga, formada por paredes de tijolos maciços de muitas eras e cercada por um jardim de grama escura molhada pela chuva fina que caía. Um poste na frente da casa iluminava a entrada, fracamente; cigarras cantavam após a chuva cessar. Alguns passos ultrapassando um muro rebocado de cimento e um portão de ferro com desenhos geométricos simples (porém, lembrando a entrada de um local importante), mais alguns passos, por uma trilha que cortava a grama, levavam até uma escada larga que era a entrada para uma varanda com uma pequena murada e com dois pilares, um a cada lado e mais dois na sua frente sustentando um telhado de telhas de cerâmica fechado por baixo com madeiras nobres. Na varanda havia uma luz branca no teto, envolvida por um lustre de ferro escuro lembrando histórias do velho Poe. Duas cadeiras brancas de vime descansavam, como se guardando fantasmas sentinelas, bem protegidas atrás da pequena murada e cobertas por confortáveis almofadas. Um cão branco e preto, de porte pequeno, peludo, com algumas manchas pretas no meio do branco de sua pelugem e com grandes manchas pretas marcando a dualidade com sua parte mais clara. Uma janela estava aberta adornada por cortinas brancas finas e quase transparentes, bordadas. A porta da casa estava aberta, pessoas conversavam no interior. Estavam preocupadas com a atmosfera de violenta repressão que pairava no país, mas, ele, embora participasse ativamente da conversa com opiniões sensatas, demonstrava ao mesmo tempo tranquilidade, e a confiança de quem pensa que “tudo sempre acabará bem”. O cão agora deitava aos pés de uma antiga televisão desligada, ao lado de uma estante onde livros empoeirados jaziam. Uma atmosfera nebulosa, como a visão de um bêbado cansado, uma viagem lisérgica. Um vento frio balançou a cortina da janela aberta, lá fora a noite tomava a tudo. Sabia que em um sonho poderia voar, se quisesse. Estava a se despedir das pessoas que desceram a escada conversando até o gramado na frente da casa. A conversa continuou quando, no meio de algumas frases, sente que havia algo diferente na cena, sente, mas, está preso ainda na embriaguez da condição onírica. Olha para o lado, na esquerda, na frente da casa, no meio de um arbusto, algo olha em sua direção, com atenção. Algo o encara, mira fundo em seus olhos. Alguma coisa estava ali e não era parte daquele sonho. Sim, ali estava um visitante, talvez, nem mesmo humano, algo extremamente sombrio e assustador, com olhos brilhantes, tal como lâmpadas de lanternas em forma de olhos de serpente, na altura de uma pessoa de estatura média, olhava-o com atenção, como se estivesse o observando já há algum tempo, olhava bem no fundo, bem no fundo de seus olhos, para dentro de sua mente. Neste momento entende o absurdo, o desamparo em que vive, em que todos vivem, sozinhos em seus mundos, instantaneamente uma descarga de adrenalina toma seu corpo, o frio aperta seu coração, sua mente gira. Havia uma presença ali, algo que parecia ter maior controle sobre as coisas, algo vivo e consciente de si o observava, essa não era a primeira vez, já tinha se deparado com essa situação sombria antes em sua infância, uma noite quando assistia um filme: sozinho na sala, na madrugada, todos já dormiam, quando olhou para o lado e viu, encostado na parede, meio escondido, como se estivesse lhe espiando, um vulto branco muito alto de um branco muito intenso e puro. O vulto, quando visto por ele, pareceu se assustar por ter sido descoberto e correu, em velocidade assombrosa, passando na sua frente uns cinco metros e sumindo em direção a um dos quartos dos fundos, deixando um vento a balançar as plantas sobre a pequena mesinha no centro da sala. Houve um dia, também, quando tinha cinco anos, que estava sozinho na casa de seus avós e olhou para a sala a uns dez metros de distância, levou um choque ao ver uma sombra em pé com pontos brilhantes lhe chamando com um gesto. Sim outras vezes havia sentido essa sensação de medo congelante, porém, dessa vez, a coisa (se é que era a mesma) havia invadido um de seus sonhos e aparecia como uma real ameaça. Aí estava algo para a psicologia e, melhor ainda, a filosofia se debruçar e construir alguma interpretação mirabolante. Indício de profundo subterrâneo não explorado. Acordou e ligou o rádio, o jornalista anunciava que um presidente demente desejava comemorar o dia do golpe militar que derrubou o país em décadas de uma sangrenta e deprimente ditadura. Paulo Vinícius 27/10/2017 (corrigido e lapidado em 01/04/2019)