Lutar e mudar as coisas (e um tanto de sincronicidades)

Imagem: Brad Kunkle Paintings (que bem representa minha insônias filosófica)

Tenho passado noites insones. Numa dessas madrugadas, entre os dias 24 e 26, filosofias me assaltaram. Pus-me a pensar nas injustiças da humanidade. “Como pode uma mesma espécime, habitante do mesmo planeta, ter níveis de consciência tão diversos?”, desilusão para resumir.

Enquanto isso, entre minhas filosofias e meu pesar pela maldade da raça humana, dia 25 de maio, mais uma morte motivada pela truculência policial e pelo racismo acontecia. Nos Estados Unidos, em Mineápolis, o policial branco Derek Chauvin, pressionava o pescoço de George Floyd (negro, aqui é preciso enfatizar), por oito minutos e vinte e três segundos. Floyd já estava algemado e apesar de qualquer resistência que uma pessoa algemada possa oferecer, não é difícil colocá-la em uma viatura. Infelizmente não foi o que aconteceu. Chauvin manteve-se ajoelhado sobre a nuca de Floyd por tempo mais do que suficiente para asfixiá-lo e por pouco mais de dois minutos, George já não se movia, nem gemia, nem protestava. Estava morto.

George Floyd sendo asfixiado por Derek Chauvin enquanto suas súplicas eram ignoradas

Antes disso, chorou, gemeu, disse que não conseguia respirar, gritou pela mãe. Pediu água e implorou, “por favor, não me mate”. Não foi suficiente para despertar a consciência de Chauvin e seus colegas, que poderiam ter feito cessar aquela tortura. Digo consciência, mas poderia dizer “compaixão”, porém sejamos práticos e realistas: o ódio do policial foi maior do que seu senso de dever, maior até do que a lógica que poderia despertá-lo para o fato de que um abuso policial mancharia sua carreira. Mas o ódio não pensa. O racismo não pensa. A certeza da impunidade dá liberdade àqueles que não temem consequências.   

Estava nos meus dias de retiro, digamos assim. Longe de toda e qualquer notícia que chegasse por qualquer meio de comunicação. Então só fiquei sabendo do acontecimento torpe cinco dias depois. Minha reação foi de nojo, o mesmo que estou sentindo agora enquanto escrevo estas palavras. Nojo e revolta. Nojo e tristeza. Mais do que isso. Asco! Inconformada, postei imediatamente em minhas redes sociais “eu não consigo imaginar… que motivos levam um ser humano a manter seu joelho apertando o pescoço de outro ao chão, sob cada vez mais fracos protestos de falta de ar, e o joelho continua ali, sustentando todo o peso de um corpo forte, pressionando uma garganta até à morte”. Através de rimas, poetizei sobre o ocorrido para manter distante a realidade crua do fato. Essa sou eu – recorrendo ao lirismo até diante da injustiça. Questionando-me, como se eu não soubesse, “por que?”. Questionamento que abrange não só essa morte infame, mas engloba o fascismo cada vez mais escancarado em nosso país, o descaso para com os que sofrem com adoecimentos mentais, o ódio às mulheres e à população LGBTQI+, o racismo, enfim, o preconceito em todas as formas. A injustiça é como uma peça de lego gigante entalada na minha garganta.

As hashtags #ICANTBREATH ou #EUNÃOCONSIGORESPIRAR palavras ditas por George Floyd aos policiais tomaram as ruas e as redes sociais

Claro que não fui a única a sentir esse nó. Milhares de “nós” protestavam há cinco dias. Protestos indignados e raivosos que não há como serem censurados. Felizmente, a comunidade negra nos EUA não é amansada facilmente. Houve excessos, dizem. Incêndios, saques, reações virulentas. “Não confundam a reação do oprimido com a violência do opressor”, é uma das falas mais conhecidas de Malcolm X, fundador da Organização para a Unidade Afro-Americana. À parte seus métodos polêmicos, não há como discordar dessa verdade. Não se você possui o mínimo de consciência de classe e sabe que a duras penas foi conquistada uma frágil igualdade entre negros e brancos nos Estados Unidos. O presidente Donald Trump chamou os manifestantes de criminosos, ignorando que um crime muito maior, semelhante a tantos outros, havia sido cometido primeiro, continua sendo cometido em menores proporções e sem distinguir criminalidade com desejo de justiça.   

Protestos em Minneapolis

Afinal, em 1955, uma negra não ceder seu assento a um homem branco, era crime de acordo com as leis do Alabama. Foi exatamente o que a costureira negra Rosa Parks fez, numa atitude que ficou conhecida como o marco zero da revolta que levaria à luta pelos Direitos Civis dos negros norte-americanos. Também era crime na Carolina do Norte da década de 60 que negros frequentassem locais destinados ao público branco. Pois, no que ficou conhecido como o protesto de Greensboro em 1961, universitários negros e brancos entraram em lanchonetes, museus, lojas, praças, teatros e demais locais segregacionistas, sentaram-se no chão e em cadeiras destinadas ao uso exclusivo de brancos e dali não arredaram pé. Ordenados e forçados a se retirarem, não esboçaram reação. A polícia tentou dispersá-los, enquanto eles não davam ouvidos e por fim, eram arrastados à força para fora dos locais. Criminosos?

Delegacia de Minneapolis em chamas

É por essa suposta criminalidade que os líderes dos movimentos dos Direitos Civis, pacíficos ou não, como o Reverendo Martin Luther King Jr. e Malcolm X são conhecidos até hoje. Fizeram barulho e incitaram a população negra a não aceitar a segregação calada. É por essa suposta criminalidade que o racismo na América do Norte não compactua com a negação de anos de história de racismo. Já no Brasil, com a desculpa de ser um país miscigenado, ainda se ouve frases como “não sou racista, até tenho amigos negros”, desdenha-se da ideia de que piadas racistas são inadequadas, “ah, meu amigo é negro e nem liga” ou chegamos ao absurdo dito por Jair Bolsonaro, “meus filhos não correm o risco de namorarem negras porque foram muito bem educados” e isso não causa extrema repulsa. Aqui, há brancos que se consideram tão boas pessoas por terem amigos negros, enquanto à boca pequena “cidadãos de bem” ainda se admiram e tecem comentários quando um casal é miscigenado. Aqui, em nosso país que se ilude com a suposta liberdade, um jovem negro caminhando pela rua vestindo o capuz de seu moletom é mais passível de suspeita e medo do que um garoto branco usando exatamente o mesmo moletom, com o mesmo capuz; brancos têm maiores possibilidades de serem bem vistos numa entrevista de emprego e ainda discute-se se as cotas para negros são mesmo necessárias.

Não compactuo com a violência, mas sou realista e conheço história o suficiente para saber que há momentos em que o aparente caos desestrutura uma ordem vigente de repressão. É utópico não esperar que os oprimidos digam “BASTA!” para que alguma transformação aconteça. A violência que ocorreu nos primeiros protestos após a morte de Floyd pode ser lamentável, mas não é incompreensível. “Não são as pessoas individualmente que decidem que a violência é a resposta; são as instituições ao nosso redor que estão saturadas de violência”, pontuou Angela Davis, a notória filósofa e militante pelos direitos civis e contra a discriminação racial, desde os anos 60.

Enquanto uns chamam protestos de vandalismo, há aqueles que compreendem que suas perdas não se comparam a perda de uma vida. O dono do restaurante Gandhi Mahal, incendiado acidentalmente durante o primeiro dia de manifestações em Minneapolis, quando os policiais ainda estavam em liberdade, é um exemplo disso. As palavras de Ruhel, proprietário do restaurante, são emblemáticas, “Nós vamos reconstruir, nos recuperar. Deixe meu prédio queimar, a Justiça precisa ser feita. Coloquem esses policiais na cadeia.”

Depois de refletir dolorosamente sobre tudo isso, sei que não faço ideia do que é viver sob a sombra do racismo. Mesmo assim, me dói. Ofende minha humanidade, causa-me vergonha e repulsa. E vejo aí uma explicação para minha angústia filosófica narrada no início do texto. Coincidência? Talvez. Prefiro chamar de sincronicidade. Esse termo usado por Carl Jung para descrever as coincidências cognitivas, onde parece existir uma conexão entre os envolvidos. (Tema vasto, que tratarei em outra coluna.)

No momento volto meu olhar para a luta que ainda há pela frente para que o mundo se torne um lugar menos belicoso; mais compreensivo e compassivo, para que as pessoas se interessem mais em entender do que em julgar. Mas sei que isso não acontecerá sem luta, mesmo que as armas sejam as palavras. Não vou parar de me indignar diante das injustiças e espero que aqueles que comungam da mesma sede de justiça não se cansem e não se rendam – que não se acostumem com a barbárie. Espero também que mais pessoas abram os olhos e enxerguem o horror que nos cerca e ao vê-lo não se calem a respeito. “Você pode dizer que sou um sonhador”, como canta Lennon em Imagine. “But I`m not the only one”. Sei que não sou a única. Sim, lutar e mudar as coisas me interessa mais do que tudo – para que não tenhamos outros Floyds morrendo injustamente, vítimas do ódio e do preconceito.

Lutar e mudar as coisas
About the author

Juliana Dacoregio

Juliana Dacoregio é jornalista e escritora. Admiradora das artes, sobretudo cinema e literatura. E o resto é silêncio (ou muito barulho por nada e um pouco de som e fúria também).

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