O Retorno do Alquimista e o Eco Incômodo de Gasset
Caros leitores, selvagens pensadores, companheiros de jornada neste oásis de reflexão que é O Pensador Selvagem (nosso querido OPS!), é com uma mistura de alegria e senso de urgência que retomo esta coluna, Mutatis Mutandis. Alegria por reencontrar este espaço de diálogo e construção coletiva, um porto seguro para mentes inquietas que buscam, como eu, decifrar os enigmas do nosso tempo e, quem sabe, transmutar alguns de seus venenos em antídotos. Urgência porque os tempos, ah, os tempos… eles rugem com uma complexidade desafiadora, ecoando diagnósticos antigos com uma pertinência assustadora.
Retornamos, portanto, não por acaso, sob a sombra (ou seria a luz incômoda?) de José Ortega y Gasset e sua obra seminal, A Rebelião das Massas. Um texto que, quase um século após sua publicação, parece ter sido escrito ontem, ou talvez para amanhã. Gasset, com sua lucidez cortante, radiografou a ascensão do “homem-massa”, aquele ser satisfeito, mimado pela civilização que não ajudou a construir, que exige direitos sem reconhecer deveres, que impõe sua ignorância com orgulho e nivela tudo por baixo, em nome de um conforto que se tornou o supremo ideal.
Quem, ao observar o cenário contemporâneo – das áridas discussões nas redes sociais à superficialidade que permeia tantas esferas da vida pública e privada, da política à cultura -, não sente o arrepio de reconhecimento diante das palavras de Gasset? A “rebelião dos satisfeitos”, a “vulgaridade triunfante”, a “mediocridade que deixou de pedir espaço para começar a governar”… são ecos que ressoam com força perturbadora em nossos ouvidos.
Contudo, esta coluna se chama Mutatis Mutandis – mudando o que tem que ser mudado. E a perspectiva que trago, como um humilde Alquimista de Possibilidades, não se contenta apenas com o diagnóstico, por mais preciso que seja. A alquimia, em sua essência, é a arte da transmutação. É olhar para o chumbo da realidade – a crítica ácida de Gasset, a constatação da crise civilizatória – e buscar, incansavelmente, os caminhos para o ouro: a esperança ativa, a transformação consciente, a reinvenção de nós mesmos e do mundo que habitamos.
Não se trata de negar a contundência da análise orteguiana, mas de ir além dela. É preciso reconhecer a doença, sim, mas com o olhar do médico que busca a cura, do permacultor que regenera o solo, do terapeuta que acolhe a sombra para integrar a luz. É preciso, como propõe o próprio espírito d’O Pensador Selvagem, integrar a análise crítica (“Pensador”) com a força vital, a intuição e a coragem de romper com o estabelecido (“Selvagem”).
Nesta reestreia, convido vocês a mergulhar comigo nas profundezas do diagnóstico de Gasset, mas com o coração aberto à alquimia da esperança. Vamos revisitar a “rebelião das massas” não para nos resignarmos ao pessimismo, mas para compreendermos as raízes da crise e, a partir daí, vislumbrarmos as frestas por onde a luz da transformação pode entrar. Afinal, como um Alquimista de Possibilidades, acredito que mesmo nos tempos mais sombrios, a capacidade humana de criar, de cooperar, de cultivar uma “nobreza interior” – não de berço, mas de espírito – pode e deve ser despertada. É tempo de mudar o que tem que ser mudado. Comecemos.
O Espelho Incômodo de Gasset: Reconhecendo o Homem-Massa em Nós e no Mundo
Adentremos, sem medo, mas com respeito, no território mapeado por Ortega y Gasset. Sua análise do “homem-massa” não é um mero exercício intelectual datado; é um espelho incômodo que reflete facetas persistentes da condição humana, especialmente quando amplificadas pelas tecnologias e pela cultura do nosso século. Gasset descreve esse “novo bárbaro” não como alguém vindo de fora da civilização, mas como um produto interno dela, um filho mimado que usufrui das conquistas sem compreender o esforço e a complexidade que as geraram.
O homem-massa, segundo Gasset, é definido por uma série de características que, infelizmente, reconhecemos com facilidade ao nosso redor – e, se formos honestos, por vezes dentro de nós mesmos. Primeiramente, há a satisfação inercial. É o indivíduo que se sente completo, que não percebe suas próprias limitações, que acredita já saber tudo o que precisa. Essa autossuficiência o torna impermeável ao aprendizado genuíno, à dúvida que move o conhecimento, à humildade diante do mistério da existência. Ele não busca a verdade, pois acredita já possuí-la. Sua opinião, muitas vezes rasa e desinformada, é brandida como certeza absoluta.
Derivada dessa satisfação, vem a rejeição à excelência e à autoridade legítima. O homem-massa não admira o que o supera, o que exige esforço, o que representa um ideal mais elevado. Ao contrário, ele ressente. Despreza o saber especializado, ri da filosofia, escarnece da tradição e de qualquer hierarquia baseada no mérito ou na sabedoria. Sua referência é a quantidade, não a qualidade. O que importa é o que “todo mundo está fazendo”, o que é popular, o que gera mais cliques ou curtidas, independentemente de seu valor intrínseco. A autoridade que ele aceita é a da própria massa, do senso comum nivelado por baixo.
Outro traço marcante é a mentalidade de direito adquirido sem contrapartida. Ele se sente credor universal da civilização. As conquistas científicas, tecnológicas, artísticas e sociais são vistas como naturais, como o ar que respira, e não como o resultado de séculos de esforço, sacrifício e genialidade de “minorias criadoras”. Ele exige acesso, conforto, facilidades, mas reluta em contribuir, em se esforçar, em assumir responsabilidades. A complexidade do mundo lhe escapa; ele quer soluções simples, imediatas, que não perturbem sua zona de conforto.
Essa mentalidade se manifesta de forma gritante na cultura da gratificação instantânea e do consumo desenfreado. O homem-massa não cultiva o espírito, ele consome ruído. Busca o entretenimento fácil, a informação superficial, o prazer efêmero. A paciência para o estudo aprofundado, a disciplina para a criação artística ou intelectual, a resiliência para enfrentar desafios complexos são vistas como fardos desnecessários. O ideal é o conforto, a ausência de atrito, a vida sem exigências.
E como isso se traduz em nosso cotidiano? Vemos a proliferação das fake news e da pós-verdade, onde a opinião subjetiva e a emoção momentânea valem mais que fatos e evidências. Observamos a polarização política rasa, que substitui o debate de ideias por slogans, memes e ataques pessoais. Testemunhamos a cultura do cancelamento, que muitas vezes opera na lógica da turba justiceira, sem espaço para o diálogo, a nuance ou a possibilidade de redenção. Vemos a arte frequentemente reduzida a produto de mercado ou a panfleto ideológico, perdendo sua capacidade de transcender, de questionar, de tocar o indizível.
Na esfera pessoal, percebemos a dificuldade crescente em lidar com a frustração, com o tédio, com o silêncio. A busca incessante por estímulos externos, a dependência das redes sociais, a ansiedade generalizada – não seriam estes, também, sintomas dessa recusa em olhar para dentro, em cultivar a tal “nobreza interior” que Gasset tanto prezava?
É crucial, no entanto, ao revisitar Gasset, evitar a armadilha de um elitismo estéril ou de uma nostalgia reacionária. O próprio OPS! nasceu com o desafio de integrar o popular e o erudito, o senso comum e o acadêmico. A crítica à massificação não deve ser confundida com um desprezo pelas pessoas comuns ou pela democracia. Gasset mesmo alertava que não se tratava de uma questão de classe social, mas de uma postura existencial. O homem-massa pode ser rico ou pobre, letrado ou analfabeto.
A questão central não é lamentar a perda de privilégios de uma suposta elite, mas sim constatar a perda de referenciais de qualidade, de profundidade e de exigência ética e intelectual que afeta a sociedade como um todo. É reconhecer que a vulgaridade, a superficialidade e a satisfação inercial, quando se tornam a norma, corroem as bases da própria civilização, impedindo-nos de enfrentar os desafios complexos do nosso tempo e de construir um futuro mais significativo.
Reconhecer o homem-massa em nós e no mundo é o primeiro passo, doloroso mas necessário. É olhar para o espelho incômodo que Gasset nos oferece e ter a coragem de não desviar o olhar. Apenas a partir desse reconhecimento honesto podemos começar a pensar na alquimia da transformação.
Para Além da Massa: A Visão Sistêmica e a Teia da Interdependência
O diagnóstico de Ortega y Gasset, embora penetrante, corre o risco de nos deixar paralisados em uma crítica focada excessivamente no indivíduo “massa”, como se ele fosse uma aberração espontânea, um desvio inexplicável da norma civilizada. A perspectiva que trago, nutrida pela visão sistêmica, pela ecologia profunda, pela ciência da complexidade e pelas tradições de sabedoria que nos lembram da nossa intrínseca interconexão, nos convida a alargar o olhar. Precisamos ir além do sintoma – o homem-massa – para investigar as causas profundas, as estruturas e os padrões culturais que o geram e o sustentam.
Como um Alquimista de Possibilidades, que também veste o chapéu de Cientista Social e observa o mundo com lentes anarquistas e ecocomunistas, percebo que a “rebelião dos satisfeitos” não é apenas uma falha moral individual, mas também, e talvez principalmente, um reflexo de um sistema maior que está fundamentalmente doente. Um sistema que, em sua busca incessante por lucro e crescimento a qualquer custo, promove ativamente a alienação, a competição predatória, o individualismo exacerbado e a superficialidade.
O capitalismo tardio, com sua lógica consumista e sua capacidade de transformar tudo em mercadoria – inclusive a cultura, a atenção e as relações humanas -, cria um terreno fértil para o florescimento do homem-massa. Somos bombardeados incessantemente por mensagens que nos incitam a consumir mais, a desejar o que não precisamos, a buscar a felicidade em bens materiais e experiências efêmeras. A própria noção de sucesso é frequentemente reduzida ao acúmulo de riqueza e status, esvaziando a vida de propósitos mais profundos e significativos.
Nesse contexto, a “satisfação inercial” descrita por Gasset pode ser vista não apenas como arrogância, mas também como um mecanismo de defesa. Diante de um mundo complexo, volátil e muitas vezes assustador, e de um sistema que nos trata mais como consumidores do que como cidadãos ou seres integrais, a recusa em questionar, em aprofundar, em sair da zona de conforto pode ser uma forma de anestesia, uma tentativa de manter uma frágil sensação de controle e segurança.
A rejeição à autoridade legítima e ao saber complexo também encontra eco em um sistema educacional que, muitas vezes, prioriza a formação de mão de obra dócil e consumidores acríticos em detrimento do pensamento crítico, da criatividade e da formação humanística integral. A especialização excessiva, sem uma visão integradora, fragmenta o conhecimento e dificulta a compreensão dos grandes desafios sistêmicos que enfrentamos, como a crise climática, a desigualdade social ou as ameaças à democracia.
Além disso, a própria estrutura da sociedade de massas, com sua mídia concentrada, suas redes sociais algorítmicas que nos prendem em bolhas de filtro e sua cultura do espetáculo, contribui para a erosão do diálogo genuíno e para a ascensão da opinião superficial como moeda corrente. O “ruído” que Gasset denunciava se tornou ensurdecedor, dificultando a escuta atenta, a reflexão ponderada e a construção de consensos baseados na razão e na empatia.
A visão sistêmica nos lembra que somos todos nós em uma teia de interdependência. Não existe um “outro” absoluto, um “homem-massa” completamente separado de “nós”, a suposta minoria esclarecida. As mesmas forças sistêmicas que moldam o comportamento da massa também nos afetam. A mesma cultura consumista nos tenta, a mesma superficialidade nos espreita, a mesma dificuldade em lidar com a complexidade nos desafia. A linha que separa o “pensador” do “selvagem satisfeito” é tênue e permeável, e exige vigilância constante.
Portanto, a crítica ao homem-massa, para ser verdadeiramente transformadora, precisa se converter em uma crítica radical ao sistema que o produz. Um sistema que nos isola uns dos outros, que nos desconecta da natureza, que mercantiliza nossas vidas e que nos impede de realizar nosso potencial mais elevado como seres humanos integrais – criativos, compassivos, colaborativos e conscientes da nossa responsabilidade mútua.
Essa compreensão sistêmica não serve como desculpa para a mediocridade ou a irresponsabilidade individual.
Pelo contrário, ela amplia nosso senso de responsabilidade. Se somos parte do sistema, também somos co-criadores dele. Se as estruturas nos moldam, também podemos agir para transformá-las. A questão, então, não é apenas como despertar a “nobreza interior” no indivíduo isolado, mas como cultivar essa nobreza em um contexto coletivo, como criar as condições sociais, culturais, econômicas e políticas para que a excelência humana – em seu sentido mais amplo e inclusivo – possa florescer.
É aqui que a alquimia se torna essencial. Precisamos transmutar a crítica sistêmica em ação transformadora. Precisamos olhar para as estruturas de dominação, alienação e insustentabilidade não como destinos inescapáveis, mas como desafios a serem enfrentados com coragem, criatividade e, acima de tudo, com um profundo senso de esperança e possibilidade. A rebelião dos satisfeitos pode ser o sintoma, mas a cura reside na construção coletiva de alternativas, na reinvenção das nossas formas de viver, de nos relacionar e de habitar este planeta. É sobre essa alquimia da transformação que falaremos a seguir.
A Alquimia da Transformação: Cultivando a Nobreza Interior e a Ação Coletiva
Se a análise crítica, tanto de Gasset quanto da perspectiva sistêmica, nos aponta a doença, a alquimia nos convida a buscar a cura. Não uma cura mágica ou instantânea, mas um processo laborioso, consciente e coletivo de transmutação. Como podemos, então, diante da “rebelião dos satisfeitos” e das estruturas que a alimentam, cultivar antídotos e semear alternativas? Como podemos resgatar e reinventar a “nobreza interior” e o papel da “minoria criadora” em um sentido verdadeiramente libertário, inclusivo e regenerativo?
A primeira alquimia necessária é a ressignificação desses próprios conceitos. A “nobreza interior” que Gasset clamava não pode, na visão de um Alquimista de Possibilidades que acredita na autogestão e na equanimidade, ser confundida com um retorno a privilégios de casta ou a uma elite intelectual desconectada da vida comum. A verdadeira nobreza, hoje, reside no cultivo consciente de qualidades humanas essenciais que foram erodidas pela cultura da superficialidade e do individualismo. Falamos da humildade diante da vastidão do conhecimento e do mistério da existência; da autocrítica constante como ferramenta de aprendizado e crescimento; do esforço e da disciplina como caminhos para a maestria e a realização genuína; da compaixão e da empatia como bases para a conexão e a solidariedade; da coragem de questionar, de divergir, de defender princípios éticos mesmo quando inconveniente; e da busca incessante por sabedoria, integrando razão, intuição e sensibilidade.
Essa nobreza interior não é um dom inato de poucos, mas um potencial latente em todos nós, a ser cultivado através de práticas deliberadas. Aqui, a sabedoria ancestral e as ciências contemplativas nos oferecem ferramentas preciosas. A prática da meditação e do mindfulness, por exemplo, nos ajuda a aquietar o ruído mental, a observar nossos próprios padrões de pensamento e emoção sem julgamento (desenvolvendo a autocrítica), a cultivar a presença e a reduzir a reatividade impulsiva tão característica do homem-massa. O Yoga Integrativa e o Ayurveda nos reconectam com a sabedoria do corpo, promovendo equilíbrio e bem-estar integral, fundamentos para uma mente clara e um espírito sereno. O estudo da filosofia, da psicologia positiva e da ciência do bem-estar nos fornece mapas e bússolas para navegar a complexidade da existência e florescer.
Da mesma forma, a ideia de uma “minoria criadora” precisa ser democratizada e dinamizada. Não se trata de um grupo seleto e estático que detém o monopólio da criação e da liderança, mas sim de um estado de consciência e ação que pode emergir em qualquer pessoa ou grupo que se disponha a pensar criticamente, a imaginar alternativas e a agir para transformar a realidade. A minoria criadora, na perspectiva libertária e sistêmica, é aquela que ousa romper com a inércia, que experimenta novas formas de organização social (como a autogestão e a governança participativa), que desenvolve soluções criativas para os problemas coletivos (na permacultura, na economia solidária, na tecnologia social) e que mantém viva a chama da utopia, da possibilidade de um mundo radicalmente diferente e melhor.
Como, então, catalisar essa alquimia individual e coletiva? Os caminhos são múltiplos e interdependentes:
- Cultivo de Si e Práticas Contemplativas: Incentivar e disseminar práticas que promovam o autoconhecimento, a regulação emocional, a clareza mental e a compaixão. Isso inclui não apenas meditação e yoga, mas também terapia, arteterapia, escrita reflexiva e o contato profundo com a natureza – antídotos poderosos contra a alienação e a superficialidade.
- Criação de Espaços de Diálogo e Pensamento Complexo: Fortalecer e multiplicar iniciativas como O Pensador Selvagem, que se propõem a ser fóruns transdisciplinares, onde diferentes saberes (científico, filosófico, artístico, popular, ancestral) possam dialogar em profundidade, desafiando a fragmentação do conhecimento e a polarização rasa. Precisamos de mais “ágoras” contemporâneas, virtuais e presenciais, onde a escuta atenta, o respeito à divergência e a busca conjunta por compreensão sejam a norma.
- Engajamento em Iniciativas Transformadoras: Apoiar e participar ativamente de projetos que já estão construindo alternativas concretas ao sistema dominante. Cooperativas, hortas comunitárias, moedas sociais, redes de apoio mútuo, coletivos culturais independentes, movimentos por justiça socioambiental – são laboratórios vivos onde a autogestão, a solidariedade e a sustentabilidade são praticadas no dia a dia. É na ação concreta que a utopia começa a se materializar.
- Revalorização da Arte, da Filosofia e da Educação Libertária: Defender e promover uma educação que vá além da formação técnica e do adestramento para o mercado, que cultive o pensamento crítico, a sensibilidade estética, a imaginação criadora e a consciência ética. Resgatar o papel da arte e da filosofia como ferramentas essenciais para questionar o status quo, expandir nossa percepção da realidade e nutrir nossa humanidade.
- Desintoxicação Digital e Cultivo da Atenção: Desenvolver uma relação mais consciente e crítica com as tecnologias digitais, aprendendo a gerenciar o fluxo de informações, a proteger nossa atenção da captura constante, a escolher conteúdos que nos nutram intelectual e espiritualmente, e a priorizar interações humanas significativas fora das telas.
A alquimia da transformação não é uma fórmula mágica, mas um convite à perseverança, à experimentação e à co-criação. É um processo que exige tanto o recolhimento e o trabalho interior (o cultivo da nobreza de espírito) quanto a ação engajada no mundo (a manifestação da minoria criadora em cada um de nós). É reconhecer que, embora o diagnóstico de Gasset permaneça relevante, ele não precisa ser uma sentença final. A capacidade humana de aprender, de mudar, de cooperar e de sonhar com futuros melhores é a matéria-prima essencial para a nossa alquimia coletiva.
Mutatis Mutandis – A Esperança Ativa em Tempos Selvagens
Chegamos ao fim desta reflexão inicial, um retorno à casa d’O Pensador Selvagem sob a inspiração provocadora de Ortega y Gasset. Partimos de seu diagnóstico sombrio da “rebelião das massas”, da ascensão da mediocridade satisfeita que ameaça sufocar o espírito humano e as bases da civilização. Reconhecemos a pertinência dessa análise em nosso tempo, observando os ecos da superficialidade, da polarização e da recusa ao esforço em tantas esferas da vida.
No entanto, como Alquimistas de Possibilidades, não nos permitimos sucumbir ao pessimismo paralisante. Ampliamos o olhar com a lente sistêmica, compreendendo que o “homem-massa” é também sintoma de estruturas sociais, econômicas e culturais que promovem a alienação e o conformismo. E, a partir dessa compreensão mais ampla, vislumbramos os caminhos da transmutação.
A alquimia que propomos é a da esperança ativa. Uma esperança que não é espera passiva, mas sim construção consciente e coletiva. É a aposta na capacidade de reinventarmos a “nobreza interior”, não como privilégio, mas como cultivo diário da humildade, da autocrítica, da compaixão e da busca por sabedoria. É a aposta na emergência de “minorias criadoras” difusas, presentes em todos que ousam pensar diferente, sentir profundamente e agir colaborativamente para transformar a realidade.
Mutatis Mutandis – mudando o que tem que ser mudado. Essa é a essência desta coluna e o chamado que ecoa ao final deste ensaio. A mudança começa em nós, na disposição para confrontar nossas próprias sombras, para sair da zona de conforto da satisfação inercial, para cultivar a atenção e a profundidade em um mundo ruidoso. Mas ela só se completa na ação coletiva, na criação de redes de apoio mútuo, na construção de alternativas sustentáveis e justas, na defesa intransigente da liberdade de pensamento e da dignidade humana.
O Pensador Selvagem, este nosso OPS!, é em si mesmo uma manifestação dessa alquimia. Um espaço para o pensamento crítico que não teme a complexidade, mas também para a sensibilidade selvagem que nos reconecta com nossa essência e com a teia da vida. Um convite à autogestão, à colaboração e ao diálogo transdisciplinar.
Que este retorno da coluna Mutatis Mutandis seja um catalisador para essa alquimia. Que possamos, juntos, continuar a decifrar os desafios do nosso tempo, a criticar o que precisa ser criticado, mas, sobretudo, a imaginar e a construir os mundos possíveis que habitam nossos sonhos mais justos, conviviais e sustentáveis. A rebelião dos satisfeitos pode ser ruidosa, mas a força silenciosa da consciência, da colaboração e da esperança ativa é, em última instância, a verdadeira potência transformadora.
Sejamos, pois, os alquimistas do nosso tempo. Com os pés firmes na realidade, por mais dura que seja, e o coração voltado para a utopia realizável. Mudemos o que tem que ser mudado. A jornada continua.
Com esperança e espírito selvagem,
Rafael Reinehr (O Alquimista de Possibilidades)
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