Respiramos tempos sombrios. Não que a história brasileira seja um mar de tranquilidade democrática ou justiça social – longe disso. Mas há momentos em que a lama parece subir mais alto, em que a desfaçatez dos donos do poder transborda de tal forma que nos obriga a nomear o abismo. O atual Congresso Nacional, essa amálgama disforme que ocupa a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, representa, sem grandes margens para eufemismos, o ponto mais baixo de nossa recente trajetória republicana. Um pântano de interesses mesquinhos, fisiologismo descarado e um projeto deliberado de desmonte dos parcos avanços civilizatórios que conquistamos a duras penas.
Observar a atuação dessa legislatura é um exercício doloroso, mas necessário. É testemunhar a consolidação de uma agenda reacionária, impulsionada por uma direita raivosa e um centro complacente, que opera em favor de uma minoria abastada e em detrimento da esmagadora maioria do povo brasileiro. Uma agenda que ataca direitos fundamentais, aprofunda desigualdades, ameaça o já frágil equilíbrio ambiental e flerta perigosamente com o autoritarismo, tudo sob o verniz de uma legalidade que serve apenas para legitimar o absurdo. Falar em “pior da história” não é hipérbole vazia; é constatação amarga diante da avalanche de retrocessos que se avoluma a cada sessão, a cada votação, a cada manobra nos corredores do poder.
Anistia aos Golpistas: A Memória Sequestrada e a Justiça Amordaçada
Um dos capítulos mais nauseantes dessa tragédia anunciada é a insistente tentativa de setores do Congresso, notadamente da extrema-direita aboletada no PL e seus satélites, de aprovar uma anistia para os envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. O Projeto de Lei 2858/2022, apresentado ainda em 2022 pelo então deputado Major Vitor Hugo (PL/GO) [1], busca, na prática, passar uma borracha sobre um dos ataques mais graves à já combalida democracia brasileira. A proposta, que concede “anistia a todos os que tenham participado de manifestações” entre outubro de 2022 e a entrada em vigor da lei, é um escárnio.
Sob a ótica de quem anseia por uma sociedade baseada na solidariedade e na responsabilidade mútua, a ideia de anistiar aqueles que atentaram violentamente contra as instituições (por mais que as critiquemos em sua essência estatal) é inaceitável. Revela a profunda hipocrisia de um setor que clama por “ordem” enquanto protege os seus, que exige punição para os pobres e marginalizados, mas busca impunidade para os que vandalizaram a Praça dos Três Poderes em nome de um projeto autoritário. A tramitação do PL 2858/2022, com seus requerimentos de urgência [2] e as manobras para mantê-lo vivo apesar das contestações de inconstitucionalidade [3], demonstra o quão longe essa parcela do Congresso está disposta a ir para proteger seus aliados e reescrever a história a seu favor.
Não se trata apenas de perdoar crimes; trata-se de validar a violência política como ferramenta, de negar a gravidade do golpismo e de pavimentar o caminho para futuras investidas autoritárias. É um ataque direto à memória coletiva e um insulto às vítimas da ditadura e a todos que lutam por justiça e responsabilização. A tentativa de anistia é a confissão de que, para essa elite política, a democracia é um detalhe inconveniente, e a impunidade, uma regra conveniente.
A Guerra Santa contra Direitos e a Razão: Aborto, Drogas e o Ataque ao STF
Paralelamente à blindagem dos golpistas, o Congresso se tornou palco de uma cruzada moralista e obscurantista, travestida de defesa da “vida” e dos “bons costumes”. A ofensiva contra o direito ao aborto legal e a tentativa de criminalizar ainda mais o porte de drogas são exemplos gritantes dessa agenda regressiva, que ignora a saúde pública, a autonomia dos corpos e a complexidade das questões sociais, preferindo o punitivismo e o controle.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que busca proibir o aborto legal no Brasil, mesmo nos casos já previstos em lei (estupro, risco de vida para a gestante, anencefalia fetal), ao inserir a defesa da vida “desde a concepção” [4], é uma violência contra as mulheres, especialmente as mais pobres e vulneráveis. Aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, presidida por figuras da extrema-direita [5], essa PEC representa um retrocesso civilizatório brutal, ignorando décadas de luta feminista e dados que comprovam que a criminalização não diminui o número de abortos, apenas os torna clandestinos e inseguros, matando mulheres.
Na mesma linha obscurantista, tramita a PEC 45/2023, originada no Senado sob a batuta de Rodrigo Pacheco (PSD/MG) e já com admissibilidade aprovada na CCJ da Câmara [6]. Essa proposta visa criminalizar constitucionalmente a posse e o porte de qualquer droga, em qualquer quantidade. Trata-se de uma resposta tacanha e populista a um debate complexo sobre política de drogas, que deveria caminhar para a descriminalização, regulação e foco em saúde pública, como apontam experiências internacionais e especialistas. Insistir na guerra às drogas é perpetuar o encarceramento em massa, a violência policial nas periferias e o fortalecimento do crime organizado, sem resolver o problema do consumo problemático. É uma política que serve apenas para controle social e repressão, não para cuidado ou emancipação.
Essa sanha conservadora se entrelaça com o chamado “Pacote Anti-STF”, um conjunto de propostas (como a PEC 8/2021 e a PEC 28/2024) que visam limitar as decisões da Suprema Corte e até permitir que o Congresso as revise [7]. Embora a crítica ao ativismo judicial e à concentração de poder no Judiciário seja legítima e necessária sob uma perspectiva libertária – afinal, questionamos todas as formas de poder centralizado –, a motivação por trás desse pacote específico é espúria. Não se trata de buscar um equilíbrio republicano ou fortalecer a democracia direta, mas sim de uma retaliação corporativista e ideológica do Congresso contra decisões do STF que contrariaram seus interesses (como em questões de emendas parlamentares, investigações ou pautas de costumes) [8]. É a disputa mesquinha entre elites pelo controle da máquina estatal, onde o povo e seus direitos são meros peões no tabuleiro.
O Desprezo pela Coisa Pública e o Futuro Hipotecado
Mas a atuação nefasta deste Congresso não se limita às pautas de costumes ou à proteção de aliados políticos. Ela se manifesta também na gestão da coisa pública, no desprezo pela transparência e na priorização descarada dos interesses do capital em detrimento das necessidades populares e da sustentabilidade planetária. As disputas por emendas parlamentares, muitas vezes obscuras e distribuídas como moeda de troca fisiológica [8], revelam um Legislativo mais preocupado em garantir nacos do orçamento para seus currais eleitorais do que em formular políticas públicas consistentes e universais.
A falta de um debate sério sobre modelos alternativos de desenvolvimento, que priorizem a economia criativa e solidária, a agroecologia, a transição energética justa e a proteção radical de nossos biomas, é sintomática. Em vez disso, vemos a bancada ruralista ditar regras que flexibilizam licenciamentos ambientais, ameaçam terras indígenas e quilombolas, e aprofundam um modelo extrativista e predatório. Vemos a defesa intransigente de uma austeridade fiscal seletiva, que corta investimentos em saúde, educação e ciência, enquanto mantém privilégios fiscais para os mais ricos e direciona recursos para setores que pouco contribuem para o bem-estar coletivo ou para a construção de um futuro mais justo e convivial.
Onde está a governança solidária e horizontal nesse cenário? Onde está a transparência radical que permitiria à sociedade acompanhar e controlar os desmandos de seus supostos representantes? O que vemos é o oposto: um Parlamento entrincheirado, refratário ao diálogo com movimentos sociais, que criminaliza protestos e busca silenciar vozes dissonantes. Um Congresso que, em sua ânsia por poder e privilégios, se distancia cada vez mais das reais necessidades e aspirações do povo brasileiro, aprofundando a crise de representatividade e a desilusão com as instituições formais.
Mutatis Mutandis: Mudar o que Precisa ser Mudado, Para Além do Congresso
Denunciar este Congresso como o pior da história recente não é um ato de desespero, mas de lucidez. É reconhecer a gravidade do momento e a urgência de resistir a esse projeto de desmonte. Contudo, a crítica, por mais veemente que seja, não pode se esgotar em si mesma, nem se limitar a esperar por uma redenção vinda das próprias estruturas que criticamos.
Uma perspectiva anarquista e socialista libertária nos convida a ir além. A reconhecer que o problema não reside apenas nos indivíduos que ocupam as cadeiras do Congresso, mas na própria lógica hierárquica, centralizadora e representativa do Estado e do sistema capitalista que ele sustenta. A solução não virá de eleições que apenas trocam as moscas, mas da construção paciente e persistente de alternativas reais, baseadas na auto-organização popular, na ação direta, na solidariedade de classe, na gestão comunitária dos bens comuns e na criação de redes de apoio mútuo.
Enquanto o Congresso legisla contra o povo, contra o planeta e contra o futuro, cabe a nós, nos territórios, nos locais de trabalho, nas escolas, nas ruas e nas redes, fortalecer os laços de convivialidade, experimentar formas de economia solidária, defender nossos direitos e construir, desde baixo, as bases de uma sociedade radicalmente diferente. Uma sociedade onde a igualdade não seja apenas uma palavra vazia, onde a sustentabilidade seja um princípio inegociável e onde a governança seja verdadeiramente horizontal e popular.
Este Congresso passará. Mas as sementes de resistência e de construção de alternativas que plantarmos hoje podem florescer em um futuro onde a política não seja sinônimo de conchavos e privilégios, mas sim a expressão viva da potência coletiva de um povo que decidiu tomar as rédeas de seu próprio destino. Mudar o que precisa ser mudado exige mais do que indignação; exige organização, luta e a coragem de imaginar e construir o impossível.
Referências:
1. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 2858/2022. Ficha de Tramitação. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2339647. Acesso em: 30 mai. 2025.
2. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Notícias. Líder do PL pede urgência para anistia aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro. 14 abr. 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1150419-LIDER-DO-PL-PEDE-URGENCIA-PARA-ANISTIA-AOS-ENVOLVIDOS-NOS-ATAQUES-DE-8-DE-JANEIRO. Acesso em: 30 mai. 2025.
3. CÂMARA DOS DEPUTADOS. REQ n. 4582/2024. Apresentado pelo Deputado José Guimarães (PT/CE) e outros. (Nota: Link específico para o inteiro teor do requerimento deve ser verificado e corrigido se necessário, pois o link original da pesquisa parecia apontar para outra proposição. A existência do requerimento de arquivamento por inconstitucionalidade é mencionada na ficha de tramitação do PL 2858/2022).
4. G1. CCJ da Câmara aprova PEC que pode acabar com aborto legal no Brasil. 27 nov. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/11/27/ccj-da-camara-aprova-pec-que-pode-acabar-com-aborto-legal-no-brasil.ghtml. Acesso em: 30 mai. 2025.
5. Ibid.
6. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PEC 45/2023. Ficha de Tramitação. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2428236. Acesso em: 30 mai. 2025.
7. ESTADÃO. Pacote que limita ações do STF: entenda o que tem nas propostas. 10 out. 2024. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/pacote-limita-acao-stf-supremo-tribunal-federal-entenda-ponto-a-ponto-propostas-limitam-poderes-ministros-nprp/. Acesso em: 30 mai. 2025.
8. ESTADÃO. Anistia ao 8/1, aborto, drogas e pacote anti-STF: saiba o que a Câmara adiou para 2025 e o porquê. 24 dez. 2024. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/anistia-ao-8-de-janeiro-aborto-drogas-pacote-anti-stf-saiba-o-que-camara-adiou-para-2025-e-o-porque-nprp/. Acesso em: 30 mai. 2025.
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