Antropofagia By João Luís de Almeida Machado / Share 0 Tweet Deliciosos e suculentos peixes. Os frutos do mar e as pescadas são as mais fortes reminiscências das refeições de minha infância. Morávamos no Litoral Norte de São Paulo, mais especificamente em São Sebastião, que lá pelos idos dos anos 1970 ainda não sofria com os congestionamentos e a presença tão acentuada de milhares de turistas a cada final de semana atrás de um abençoado lugar nas belas praias daquela localidade tão espetacular. Foi uma infância deliciosa. De brincadeiras na rua de terra batida com os amigos e de árvores frutíferas diversas para podermos subir e apreciar saborosas jacas, mangas, goiabas, bananas,… Ficávamos até mais tarde na rua, andando de bicicleta, brincando de esconde-esconde, empinando pipa, jogando bola ou simplesmente jogando papo fora. Íamos com freqüência à rua da praia, onde invariavelmente acabávamos degustando alguns acepipes locais como porções de porquinho, isca de peixe, camarões, vieiras, lulas fritas ou casquinhas de siri. Enquanto os adultos engrenavam conversas animadas com seus pares, as crianças atacavam as generosas porções e depois ficavam brincando na praça local. Meus pais, João e Ana, fizeram grandes amizades, daquelas que duram para sempre, e era com essas pessoas que eles se reuniam no Fliper e em outros restaurantes de São Sebastião. E o melhor de tudo é que esses ótimos amigos tinham aproximadamente a mesma idade deles e filhos na mesma faixa etária de minhas irmãs e de mim. As amizades eram sinceras e tinham como marca maior a proximidade. Nossos pais eram funcionários da Petrobrás. Trabalhavam no Tebar (Terminal Almirante Barroso), a grande motivação da ida de tantas pessoas para São Sebastião entre o final dos anos 1960 e início da década de 1970 eram justamente as oportunidades de trabalho surgidas com a instalação de nossa petrolífera nacional no município. E como quem mora na praia acaba virando caiçara, conosco não foi diferente. Eu e minhas duas irmãs mais velhas, Cláudia e Flávia, vivíamos na praia e quando não estávamos lá íamos a escola ou ficávamos na rua, em frente de casa, acompanhados pelos atentos olhares de nossa mãe, para curtir um pouco do tempo livre com os amigos da vizinhança. Somos todos taiadas, ou seja, nascemos em Caçapava, no Vale do Paraíba paulista, cidade dormitório que localiza-se entre São José dos Campos e Taubaté. A estadia em São Sebá (como carinhosamente chamamos a cidade hoje em dia) durante a nossa infância nos fez mesclar as raízes caipiras do interior paulista com o pé curtido pelas areias escaldantes do litoral e a proximidade dos pescadores e das praias. Dessa intensa experiência acabamos reunindo um pouco dos genes próprios dos caiçaras, moradores do litoral brasileiro. É por esse motivo que a memória gastronômica mais forte acaba sendo exatamente a dos peixes e frutos do mar. E não pensem que as melhores receitas foram aquelas que degustamos nos restaurantes da rua da praia, no centro da cidade. Eram muito boas as produções daquelas cozinhas, mas nenhuma delas consegue superar os encantos do tempero calibrado em doses certas preparado por Dona Ana, minha mãe. Minha mãe é daquelas mulheres que são capazes de realmente dar a vida pelos filhos (e meu pai também). Por todos, sem exceção, apesar das eventuais ciumeiras que qualquer família tem, já que sempre se desconfia da preferência da mãe ou do pai por um dos rebentos. Como fazemos parte de uma prole de bom número (em 1974 chegou o caçula da turma, meu irmão Pedro Luís) invariavelmente acabávamos disputando a atenção de nossos pais. Ainda bem que coração de mãe e de pai tem espaço suficiente para todo mundo! Na cozinha, em suas preparações, pudemos (e ainda podemos, felizmente) constatar também esse seu amor e dedicação por nós. Tainhas assadas, pescadas à milanesa com molho de tomate e queijo ralado, sardinhas fritas e peixes ensopados deliciosos acompanhavam o arroz e feijão com salada e verduras de todas as semanas. Comíamos peixe de duas a três vezes por semana. Acho que isso até ajudou todos nós a termos boa memória (sempre ouvi dizer que o fósforo presente nos peixes ajudava muito, e me lembro muito bem disso). E as receitas contendo os não menos apreciados frutos do mar também eram exploradas pelas mãos sempre hábeis de nossa mãe. Camarões, lulas, polvos, ostras e mexilhões eram também companhias freqüentes. Alternadamente também podíamos desfrutar de delícias tradicionais da cozinha caipira do Vale do Paraíba. Bananas à milanesa, farofas de ovo com bacon, feijão suculento ou um gostoso viradinho, carnes ensopadas, sopas de verduras ou legumes, dobradinhas, canjas de galinha, bolinhos de carne, espinafre ou arroz e ainda alguns risotos “já te vi disfarçado” faziam o revezamento com os peixes e também alegravam nossas refeições. Camarão e outros frutos do mar também faziam parte das alternativas alimentares que tínhamos em nossas refeições. Quais são as suas lembranças? Resgate esse saboroso assunto a partir do livro “Céu da Boca”… Se não bastasse tudo isso, ainda comíamos muita fruta nas sobremesas (lembro-me com especial carinho das melancias) e alguns doces, dos quais a melhor recordação é, sem dúvida, do pavê de amendoim, doce imbatível em minhas memórias gustativas como o meu preferido até os dias de hoje. Também tive alguns momentos infelizes à mesa, não por culpa de minha mãe, mas de meu gosto particular… Fígados, miolo, língua, jilós, quiabos escorridos e alguns outros pratos me faziam comer muito a contragosto. E o pior de tudo para mim era o fígado. Não havia sequer uma variação que conseguisse me convencer de que aquilo era na verdade algum castigo divino. Por isso, algumas vezes, cheguei a deixar alguns pedaços caírem acidentalmente para debaixo da mesa… Para deleite de nossos cachorros! E por que recupero nesse artigo essas memórias tão pessoais? Para falar de um livro que também é uma delícia e que deve ser degustado por todos… Trata-se de “Céu da Boca”, organizado por Edith Elek e publicado pela Editora Ágora, esse volume reúne histórias pra lá de apetitosas de experiências como a minha. São relatos de 18 pessoas bem conhecidas, entre as quais há chefs, terapeutas, jornalistas, restauranteurs e escritores, que falam de suas melhores lembranças de refeições da infância. Cada uma das histórias contadas é fascinante por resgatar receitas, hábitos, costumes, histórias de família, lembranças de diferentes localidades e principalmente muito afeto. São retratos de um tempo em que as famílias eram muito diferentes daquelas que vemos hoje em dia. Dá muita saudade e um gostinho de quero mais. Ainda bem que na minha casa as coisas ainda são bem à antiga, tanto com os meus pais quanto com minha esposa e os filhos…