Perguntar ofende? Deveria.

Este artigo inaugura a seção Perguntas. Para quem tem curiosidade pela filosofia, mas morre de medo de perguntar. Se um engenheiro pode se interessar por história, uma advogada por física, um turista por literatura, uma fiscal da Receita por cinema e assim por diante, por que, ou com que base, qualquer um desses, ou todos eles, se interessariam por filosofia? Uma coluna para despertar a curiosidade de cientistas, artistas, profissionais liberais, funcionários públicos, executivos…

Por Diego Viana

Faz meses que estou adiando o início desta seção. Imagino mesmo que o pessoal esteja estranhando, talvez tenham até pensado em cancelar o espaço e romper comigo. Eu entenderia. Então, para desviar o foco e o assunto, passo às explicações.
Estive pensando muito sobre como preencher este espaço que colocaram na minha mão. Não é fácil receber a missão de escrever sobre filosofia e escolher o melhor jeito de fazê-lo. Por outro lado, acabei concluindo que justamente essas reflexões cairiam muito bem como material do primeiro texto. A tentação talvez mais forte seria publicar ensaios pessoais, tentar provar teses revolucionárias, reformar a metafísica, descobrir o que realmente quis dizer Hegel…
Mas tive preguiça. Espero ter muitos anos de vida ainda para revolucionar os fundamentos da metafísica. Agora, minha preocupação maior é não entediar o leitor selvagem.
Fiel ao título que acabei escolhendo para a coluna, depois de matutar duramente por meses a fio, decidi estabelecer como paradigma do que vou escrever aqui uma pergunta. Ei-la: se um engenheiro pode se interessar por história, uma advogada por física, um turista por literatura, uma fiscal da Receita por cinema e assim por diante, por que, ou com que base, qualquer um desses, ou todos eles, se interessariam por filosofia? Partirei dessa pergunta e me deixarei guiar por ela, como um farol. Ambiciono escrever uma coluna de filosofia que desperte a curiosidade de cientistas, artistas, profissionais liberais, funcionários públicos, executivos e quem não se encaixar em nenhuma dessas categorias. Vamos ver se dá certo.
Uma versão preliminar deste texto chegou a ser publicada há alguns meses, no auge da crise do OPS!, quando o título da coluna ainda seria "Problemas". Do ponto de vista filosófico, era até mais correto que "Perguntas", porque a filosofia, em grande medida, consiste em encontrar os problemas daquilo que parece claro e límpido, esgotar todas as possibilidades de abordá-lo e deixar o bagaço para ser tratado pelas ciências, artes e religiões… Mas depois entendi que o título era um equívoco estratégico. Com tantos problemas que já temos na vida, quem vai querer acessar uma coluna justamente com esse nome? "Problemas! Já bastam os meus", imagino dizer um leitor em potencial, já praticamente perdido. E ele está certo. Sou uma nulidade em estratégia de mercado.
Acontece que me deixei seduzir por uma frase de Henri Bergson, um filósofo que nem está entre meus preferidos, mas que de vez em quando atinge o fundo das questões com dois toques de muita classe. Diz ele que, se você não consegue resolver um problema, é muito provavelmente porque não entendeu o problema e o formulou mal. Em outras palavras, as perguntas certas já são quase respostas. Perdemos tanto tempo procurando soluções para os problemas em que acreditamos e a que damos tanta importância, mas talvez devêssemos, em vez disso, repensar os próprios problemas. Ou seja, talvez devêssemos filosofar um pouco.
Portanto, como um problema se expressa melhor através de uma pergunta, mudei o nome da coluna. "Perguntas". Uma tentativa de entender e demonstrar como, para cada afirmação, para cada coisa sabida ou aceita, há sempre perguntas que mostram o quanto ainda resta a entender, o quanto temos de fechar os olhos para aspectos fundamentais de nosso problema, seja ele a vida, o trabalho, a política, o conhecimento, a arte, a justiça, se quisermos lidar com o mundo sem se entregar um pouco a reflexões filosóficas. Espero conseguir fazer com que pelo menos um leitor selvagem, se possível você mesmo, concorde comigo quando digo viver sem filosofia significa aceitar sem ressalvas alguma filosofia já estabelecida.
É por isso que me surpreende a forma com que freqüentemente se lida com a filosofia no "mundo real". Pelos comentários sobre a volta da disciplina às escolas do país, vê-se logo que o assunto é tenso e a vontade de entendê-lo, quase nenhuma. Como tudo na vida, alguns adoram a filosofia, outros a detestam, muitos escarnecem, uma infinidade de gente pensa que gosta porque confunde auto-ajuda barata com reflexão filosófica. Por último vêm os culpados pela má fama da disciplina, aqueles que, sofrendo de verborragia e delírios místicos, acham que são a reencarnação de Sócrates. A única coisa em comum entre todos esses grupos é que nenhum leva a coisa a sério.
Nada mais insuportável, por exemplo, que os primeiros meses de um curso de filosofia na universidade. Uma sala apinhada de gente, metade querendo aprender, a outra metade querendo provar que os pensadores citados em aula não entenderam nada. E que determinados outros entenderam tudo. Enfim, pouco importa. Fato é que, ao final do ano, que digo, do semestre, essa turma toda já abandonou o curso, irritada com a exigência de argumentação e leitura, e foi buzinar nas orelhas de outrem. Alguém que não exija deles uma postura honestamente filosófica.
Muito infelizmente, são esses que carregam por aí a imagem de filósofos. Gente que pensa que é gênio, eis a figura popular do filósofo que sempre baixa nos botequins da vida (e a vida nada mais é do que os botequins que o vivente freqüenta). Pois como explicar aos que sofrem, assediados entre um copo e outro por esses enormes pentelhos, que um dos maiores aprendizados do estudo da filosofia é a inutilidade do gênio? Que o gênio só faz mesmo alguma diferença em condições raríssimas e improváveis? Impossível. Por outro lado, posso garantir que não é na filosofia que o gênio auto-intitulado encontra o campo mais fértil. E não sei onde é. Mas, como ex-economista e ex-estudante de jornalismo, posso apontar aí dois campos em que essa turma consegue que os colegas lhes lambam as botinas. Cá entre nós, não deve ser diferente em outras áreas…
Quanto à idéia (dita utilitarista [sic]) de que não há uso prático para a filosofia, de que ela não serve para ganhar dinheiro, de que não diz nada sobre a vida real, nada a comentar. Espero que os parágrafos anteriores e os seguintes bastem para refutar essa falácia. Sobre a utilidade prática, bem, não vejo em que ela seria menor do que a da física quântica, que, aliás, resvala em várias questões filosóficas. Sobre o dinheiro, compreendo a preocupação, obrigado. Mas o que rende não são áreas de conhecimento, mas ocupações. Ser economista, político ou lutador de artes marciais não dá dinheiro. O que dá é ser chairman do Fed, como Alan Greenspan, presidente dos EUA, como Bill Clinton, ou astro do cinema, como Bruce Lee. Mas, opa! Todos os três estudaram filosofia… Quanto à vida real, bom, prefiro reservar um artigo inteiro para esse assunto, mas já adianto que uma das maiores dificuldades da filosofia é justamente o fato de ela não ser e não poder ser puramente abstrata como, lá vai um exemplo batido, a matemática.
Foram, para resumir, esses pontos que me levaram a escolher a abordagem pelos problemas, isto é, pelas perguntas, em vez dos sistemas, doutrinas e teorias. Afinal, toda teoria é uma solução que se propõe a um problema ou resposta a uma pergunta. Por que perder tempo falando de grandes filósofos, com suas barbas e cabeleiras, se não sabemos nem sequer se os problemas de que eles tratam têm alguma importância? Quem vai querer ouvir uma explicação sobre termos técnicos como substância, essência, Dasein, devir, eterno retorno, mônadas e o diabo a quatro (este último, um termo não-filosófico), se tudo isso, no fundo e na falta de uma noção clara do que está em jogo, parece conversa de desocupados?
Se, um dia, alguém inventou de filosofar, posso garantir que não foi à toa. Foi porque existem problemas, e eles estão na base de tudo que fazemos. É da natureza humana a mania, o hábito, a capacidade, chame como quiser, de não simplesmente lidar com as coisas com elas aparecem. Fazemos perguntas sem parar, desde a infância (quem tem filhos sabe bem), para entender como as coisas chegam a ser como são e o que podemos fazer sobre elas. Essas perguntas não nos largam jamais, nem quando tentamos compreender o mundo, nem quando pintamos um quadro, nem quando falamos mal dos vizinhos, nem quando saímos para comprar peixe ou votar para deputado.
Mais do que preocupações ou obstáculos, são o combustível da nossa existência, são aquilo que dá algum sentido à vida. Se é que a vida precisa de sentido, e eis aí mais uma pergunta que pode dar razão a muita filosofia. Enquanto for assim, e sempre será, a filosofia simplesmente não poderá ser evitada.

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Diego Viana