O horror, o horror…


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No dia 11 de novembro próximo completa-se 90 anos do final da Primeira Guerra Mundial. Nenhuma guerra foi mais estúpida e absurda do que esta. O Dadaísmo foi a resposta dos artistas.

Aquilo o que deveria ter sido apenas um conflito regional de pequena proporção fugiu ao controle dos políticos e diplomatas e transformou-se na maior guerra já vivenciada até então, e a primeira em escala mundial. É difícil precisar o número de mortes, mas estima-se em cerca de 20 milhões de civis e militares que perderam a vida. Além das mortes, milhões de feridos, centenas de milhares de pessoas mutiladas, o primeiro genocídio da história (a tentativa de extermínio dos armênios pelos turcos), a reformulação do mapa geopolítico da Europa, e outras inúmeras conseqüências que repercutem até os dias de hoje.
Apenas para personalizar algo do horror da Primeira Guerra, cito um relatório de um médico inglês que aplicava, de modo pioneiro, as técnicas da psicanálise no tratamento das então chamadas “neuroses de guerra”. O texto é de 04 de dezembro de 1917 e, dentre uma série de tentativas de tratamento bem sucedidas, ele narra um fracasso:

Tal é o caso de um jovem oficial que foi arremessado por uma explosão de um projétil de artilharia, de maneira que seu rosto chocou-se com o abdômen distendido de um soldado alemão morto há vários dias e o impacto de sua queda rompeu o cadáver inchado. Antes de perder a consciência, o paciente teve clara percepção da sua situação e sabia que a substância que preenchia sua boca e suas narinas e que produziam as mais horrendas sensações de gosto e mau cheiro derivavam das entranhas decompostas do inimigo. Quando voltou a si ele vomitou profusamente e ficou extremamente abalado; no entanto, continuou no front por vários dias, vomitando freqüentemente e sendo assombrado por imagens e sensações persistentes de gosto e de mau cheiro. Quando ficou aos meus cuidados meses depois, sofria de terríveis pesadelos nos quais os eventos que narrei eram reproduzidos fielmente, ainda que lutasse intensamente para manter essas horríveis e dolorosas memórias fora de sua mente.

Isso é a guerra, a “única higiene do mundo” dos Futuristas. Diante disso, nem haveria porque falar de arte.
Entretanto, no universo artístico houve duas posições distintas diante de tal horror. Uma considerava a guerra apenas um desvio do caminho de progresso social e cultural, baseado na racionalidade, que a civilização ocidental percorria a passos largos desde a revolução industrial: essa era a corrente construtivista. Tudo seria uma questão de retomar o caminho correto, através de reformas, ou se necessário, revoluções, das instituições vigentes. Isto feito, a civilização retomaria seu rumo. Balela, dos irrecuperáveis românticos à direita e à esquerda, dos arquitetos racionalistas e dos designers industriais
Os que analisavam a situação com mais realismo e objetividade percebiam que a guerra era conseqüência da mesma lógica que embasava o progresso científico-tecnológico da sociedade industrial do Ocidente. Era produto da mesma civilização que remontava aos gregos (que, não por acaso, inventaram o chamado “modo ocidental de fazer a guerra”, para utilizar o termo cunhado por John Keegan) e que se orgulhava de Platão, Aristóteles, Kant, Copérnico, Kepler, Newton, Dante, Shakespeare, Giotto, Rafael e Michelangelo. Se essa cultura culminava numa carnificina irracional e desmedida, que sentido faz a história? Aliás, o que faz sentido diante da morte em escala cósmica? Nada. Absolutamente nada.
Esse era o posicionamento dos artistas e intelectuais que fundaram o dadaísmo, talvez o mais importante movimento artístico do século XX, e que, da mesma forma que a Primeira Guerra, repercute até os nossos dias.
O movimento Dadá, cujo nome não tem significado algum, fez tabula rasa de toda cultura, de toda forma de arte, e de toda forma de comunicação. Aboliu toda técnica, todo significado e toda representação de qualquer manifestação artística. Sua atitude é desmistificadora, iconoclasta: nenhuma obra talvez seja mais representativa disso do que a Mona Lisa com bigodinhos de Marcel Duchamp. O Dadá utiliza-se de objetos triviais, cotidianos, deslocados de seu contexto, não para torná-los nobres ou sublimes, mas para negar todo valor que se atribui ao trabalho artístico: são os ready-made, que ainda hoje, no mais das vezes desprovidos dessa carga niilista absolutamente pertinente, infestam os salões e mostras de arte contemporâneos. Usa a performance e o choque como instrumentos de contestação da arte enquanto ferramenta de aprimoramento do caráter e do indivíduo, tese muito cara aos conservadores e moralistas de todas as eras.
Citei apenas Duchamp, que considero o mais influente artista do século XX, mas junto dele estavam o poeta e ensaísta Tristan Tzara, Jean Arp, Francis Picabia, Kurt Schwitters, Max Ernst, o fotógrafo e pintor Man Ray, entre outros.
Como movimento organizado, o dadaísmo durou até mais ou menos 1921. Sua influência perdura até hoje, ainda que de forma diluída, muitas vezes gratuita e irrelevante, e quase sempre repetitiva, já que seus atuais perpetradores contam com nossa memória curta para que seus trabalhos pareçam novos e contestadores (qualquer dúvida quanto a isso, basta ir à Bienal deste ano, ou a qualquer Bienal). E talvez dure enquanto vivermos num mundo prenhe de hipocrisia, de desigualdades e de desumanidade. Enquanto essas coisas existirem, pouco importa que sejamos da mesma espécie que gerou Michelangelo e Einstein, que foi à Lua e voltou; é a mesma espécie que gerou Hitler e Stálin, que permitiu o holocausto de judeus, homossexuais, ciganos e outras minorias e que produziu, e utilizou, a bomba atômica, contra civis. Não há glória humana, e muito menos arte, que resista a isso.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.