Mas de que perguntas estamos falando?


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No segundo texto da coluna, paramos para investigar o que é a pergunta filosófica. O que ela tem de particular? Como pode ser mais importante que a resposta? Como exemplos, Deleuze, Pascal e Sartre.

por Diego Viana
Já estava engatilhado o próximo texto desta coluna Perguntas, mas pensei melhor e resolvi encaixar este outro no lugar. Eu estava com uma daquelas estranhas sensações de que tinha algo faltando… e acho que descobri o que era. Falei tanto, duas semanas atrás, sobre a decisão de chamar a coluna de Perguntas, em vez de Problemas, como planejado. Argumentei que, embora a filosofia trate, claro, de problemas, alguns deles bastante cabeludos, o que é mais importante para ela são as perguntas. E o que ficou faltando foi justamente isso: tentar entender por que – coloquemos assim – a pergunta é mais filosófica do que o problema.
Isso tudo quer dizer, no fundo, que a primeira coisa que um filósofo deve ter em mente ao começar suas investigações é que seu objetivo maior não é encontrar uma boa resposta, mas uma boa pergunta. Sei o quão esquisita uma afirmação como essa pode parecer. Se nós fazemos perguntas, é porque queremos obter respostas. Como pode a pergunta ser mais importante?
Para essa pergunta, aliás bastante interessante, há várias respostas possíveis, o que só testemunha a favor da questão. A explicação mais conhecida é a que Henri Bergson formulou, dizendo que uma pergunta bem formulada é meio caminho andado para encontrar a resposta. Mas, para o que me interessa neste texto, prefiro me concentrar em outra alternativa. O maior problema é que péssimas perguntas podem ter ótimas respostas, e é aí que a vaca vai para o brejo.
Eis um exemplo bastante simplificado. Pense num médico de antigamente, diante de um paciente cuja doença é terrível. A febre, altíssima, não quer baixar por nada. Imagine que ele se pergunta: "Como posso baixar essa febre terrível?" Resposta muito simples: basta fazer uma incisão no braço, recolher alguns centilitros de sangue e, pronto, lá se foi a febre. Muito preocupado em encontrar uma resposta para o problema que tem à mão, uma pessoa ardendo e suando, ele não parou para se perguntar se a febre e a doença são a mesma coisa. Como não são, o paciente pagou com a vida.
Há muitos campos do conhecimento humano que se ocupam das respostas. De um lado, temos as ciências, que, com seus experimentos, encontram leis e fórmulas para responder nossas perguntas sobre como funciona o mundo. De outro, temos as leis e sua aplicação, que, com seus códigos e tribunais, respondem a nossos anseios sobre como devemos e podemos agir, viver coletivamente e assim por diante. De maneira geral, podemos dizer que nossa vida é regida por essas respostas já mais ou menos pré-programadas. Ainda bem, claro. Sem isso, seria impossível levar o dia-a-dia. Acontece que essas respostas, como tudo no mundo, têm seu ponto fraco. Só funcionam dentro de um quadro de perguntas que, para as ciências, é o famigerado paradigma (na terminologia de Thomas Kuhn) e, para as Leis, o conjunto de princípios a que chamamos moral.
Nenhum quadro desses é perfeito. O que faz com que seja bom ou mau é a estabilidade das respostas que consegue dar. Enquanto as explicações do mundo que a ciência consegue fornecer forem convincentes, o paradigma se sustenta. Enquanto uma determinada sociedade conseguir se manter razoavelmente pacífica com as leis que tem, seus princípios morais subsistem. No exemplo usado acima, a sangria que o médico medieval fazia nos pacientes era justificada porque, até onde se podia ver, aquilo funcionava. Só se passou a ver que não era a melhor opção quando o paradigma foi deslocado. Por sinal, em períodos de calmaria como esses, as pessoas tendem a perder o interesse pela filosofia.
Mas chegam momentos em que começa a ficar claro que aquelas respostas não são mais satisfatórias. Logo elas, que se encaixavam tão bem às perguntas! E, justamente, fica claro que o problema está nelas mesmas, nas perguntas. Os termos em que estão colocadas é que não servem mais para fundar a estrutura das leis, das ciências, dos costumes, enfim, de tudo na vida. E é nesse momento que os filósofos são lembrados, eles que mofaram tanto tempo em seus escritórios, discutindo conceitos esquisitos e aparentemente inúteis…
Resta agora determinar o que isso tudo quer dizer. Imagino que, se alguém leu até aqui, deve estar curioso. O que faz de uma pergunta, então, que seja filosófica? Por que caberia perguntar, digamos, se um ornitorrinco é um mamífero, apenas à biologia, e não à filosofia? Tentando esboçar uma explicação, eu me lembrei do Abecedário de Deleuze. Trata-se de um vídeo famoso em que Gilles Deleuze, um dos principais filósofos franceses da segunda metade do último século, discorre sobre vários temas, instigado por uma entrevistadora que segue a ordem alfabética. O "Q" é de questão, e ele diz algo interessante: uma verdadeira questão é coisa rara. Nas entrevistas, por exemplo, o que há não são questões, mas interrogações: "o que você acha disso ou daquilo?"
A verdadeira questão, porém, não pode ficar na superfície das opiniões, no entender de Deleuze. Ela precisa esclarecer o que está em jogo num determinado problema. O exemplo que ele dá é a famosa Aposta de Pascal. Resumindo bastante, o que diz o filósofo do século XVII é uma espécie de proto-versão do Dilema do Prisioneiro. Se você aposta que Deus não existe e Ele, de fato, não existe, então você não perde nada. Mas, se Ele existe, você perde a Salvação e arde no Inferno. Por outro lado, se você aposta que Deus existe, mas Ele não existe, você não perde nada. Se Ele existe, você ganha a Salvação. Logo, vale mais a pena apostar que Deus existe e viver de acordo com essa crença.
A pergunta que está por trás disso parece ser "Deus existe?" ou "Será que devo crer em Deus?". Mas, segundo Deleuze, o buraco é bem mais embaixo. A questão é saber qual é a melhor forma de viver. A do fiel ou a do ateu? Para Pascal, o ateu corre um risco desnecessário, ao passo que o fiel pode levar a vida tranqüilamente. Embora a conclusão seja bastante discutível, o que nos interessa é entender qual é o jogo que está por trás das idéias e das questões.
Sendo assim, eu colocaria a coisa da seguinte forma: a questão filosófica é aquela que se interroga sobre o que exatamente queremos dizer quando falamos de tal ou tal coisa. Quando as pessoas querem ironizar um filósofo, normalmente elas o imitam fazendo perguntas que parecem absurdas: "o que é a vida?", "o que é o mundo?", "o que é o bem?". Mas essas perguntas deixam de parecer tão absurdas quando a entendemos sob o prisma do que queremos dizer precisamente. Afinal, sem definir o que entendemos por "vida", não podemos nem começar a discutir questões como o aborto e a eutanásia. Sem discutir o que entendemos por "mundo", parece até ridículo querer estabelecer leis para seu funcionamento. Se não sabemos o que queremos dizer com a palavra "bem", como podemos nos dar o direito de colocar alguém na prisão por agir mal? Olhando assim, o que parece absurdo, para não dizer ilegítimo, é que queiramos atirar respostas para todos os lados, se não conseguimos nos entender nem mesmo sobre as primeiras questões.
Eis aí nossas perguntas. Para terminar, quero usar um outro exemplo, um tanto polêmico e, por isso mesmo, perfeito para o propósito deste texto. Outro famoso francês do século XX, Jean-Paul Sartre, fundou sua filosofia sobre o princípio de que o homem é livre, radicalmente livre, condenado à liberdade. Tão livre, que toda justificativa que ele dá para um ato seu é sempre de má-fé. Ao explicar por que fez isso ou aquilo, o indivíduo invoca "a razão", "o dever", "a condição social" ou qualquer outra coisa, negando sua própria liberdade ao se escorar em algum princípio que é, invariavelmente, pura mistificação. De tal maneira, que a verdadeira boa-fé aparece como qualquer coisa de impensável, impossível e indizível. O ato de boa-fé teria de ser absolutamente gratuito, sem razão, sem explicação, sem motivação, sem nada. Um ato absurdo e vazio. Numa palavra, louco.
Questionável? Claro, muito, e não falta quem o questione. Mas vamos olhar mais de perto, com nosso princípio do que seja uma pergunta filosófica. O que, exatamente, quer dizer "o homem é radicalmente livre"? Ora, sabemos que a teologia católica é baseada na idéia de que Deus deu ao homem o livre arbítrio, isto é, aquilo que funda boa parte da Ética no Ocidente cristão é a certeza teológica de que o homem é livre para escolher o pecado ou a Salvação. Livre, absolutamente livre. A não ser pela convicção de que haverá um Julgamento Final, um Paraíso ou um Inferno, para aquele que crê. Mas, pensando bem, se o homem é tão livre assim, a própria crença é um ato de má-fé, na perspectiva de Sartre. Sendo assim, o que nos resta? Pois bem, eis a pergunta que o filósofo coloca: o que quer dizer, ou melhor, o que implica acreditar que o homem dispõe do livre arbítrio? Eis a pergunta que está no ar em seus livros, a começar pelo perturbador A Náusea.
Antes de encerrar, deixo um desafio ao leitor: e se, assustados com a idéia de que o livre arbítrio implica que toda ação justificada é uma tentativa (de má-fé) de negar nossa liberdade, concluirmos que o homem não é livre, coisa nenhuma? Spinoza, por exemplo, pensava assim, e isso lhe valeu grandes problemas com a comunidade judaica de Amsterdam. O que implica, o que queremos dizer exatamente e quais são as conseqüências de afirmar que o homem não é livre?
É com vocês.

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Diego Viana