Brueghel: mais atual do que nunca

Ou, de como um fundo de tela de computador e uma notícia de jornal acabam por me levar até Brueghel.

No papel de parede do meu pc tem um Brueghel. É uma reprodução de “O Triunfo da Morte”. O fundo de tela do computador é um revelador de almas. Um coloca a foto dos filhos; outro, aquele pôr-do-sol magnífico das férias do último ano em Itaparica; um terceiro prefere a Gisele Bündchen coberta apenas por alguns lençóis, e por aí vai…
Devo ser um pessimista retinto por escolher uma imagem tão terrível, mas, como disse, o fundo de tela do computador revela a têmpera do dono. Escolhi este por dois motivos: Brueghel é um dos meus pintores prediletos e “O Triunfo da Morte” é muito adequado aos dias de hoje. Sendo justo, é adequado para qualquer período histórico do ser humano.
Brueghel é um espanto. Temos poucas informações sobre sua biografia, e as informações que temos são pouco confiáveis. Já foi chamado de “Camponês Brueghel”, por se confundir os temas retratados por ele com sua própria vida. A lógica é essa: Brueghel pinta cenas da vida das pessoas simples; ele é, conseqüentemente, um camponês simplório. Isso não corresponde aos fatos. Um autor chamado Gustav Glück demonstrou que suas telas de camponeses têm origem na cultura palaciana.
Brueghel não era um simplório, e suas pinturas não eram exatamente o que poderíamos chamar de arte popular. As imagens que ilustravam aspectos do cotidiano dos camponeses e dos níveis inferiores da sociedade não visavam enobrecer esse dia-a-dia dos mais pobres, muito pelo contrário… Havia um nicho específico para uma arte que representava os chamados tipos populares (como o lenhador, o camponês, o vinhateiro, entre outros) para satisfazer uma certa curiosidade das camadas mais abastadas da sociedade. Mas essa arte enfatizava, antes de tudo, o grotesco e o cômico.
Chamei Brueghel de espantoso porque ele consegue, de alguma forma, fugir dessa abordagem estereotipada e ainda criar imagens que são documentos humanos inquestionáveis e eloqüentes. Sua abordagem é neutra, na medida em que não transforma os camponeses retratados em caricaturas nem os converte em heróis (como fariam os românticos). É gente que respira e transpira, que come e que bebe, que dança e canta, que fornica e defeca, que vive hoje, e não amanhã ou ontem. Brueghel transforma suas personagens em entes que nos são contemporâneos, e essa é uma de suas maiores virtudes.
Outra característica de Brueghel é o modo como ele une as personagens e o espaço onde elas habitam. São indissociáveis, fazem parte de algo que é uno e são feitos da mesma matéria. Uma pintura como “A Procissão ao Calvário” subverte completamente o cânone renascentista ao deixar em segundo plano o tema principal, que seria o Cristo carregando sua cruz rumo ao Gólgota acompanhado por uma multidão. A multidão está lá, é o que de imediato se percebe. Mas a cruz e o Cristo estão perdidos no meio da composição, tão secundários como qualquer outra figura do plano de fundo. Brueghel parece dizer que esse drama terrível, esse drama que inaugura uma nova era na civilização, é tão corriqueiro quanto qualquer outro e que, no frigir dos ovos, não faz muita diferença numa escala cósmica. Como todo grande artista, Brueghel desafia convenções e simplificações.
Resolvi escrever sobre ele por causa da conjunção de dois fatores. Um Brueghel é a tela de fundo do meu pc, vejo-a todos os dias e ela acaba funcionando para mim exatamente como memento mori, isto é, uma lembrança de que sou pó e ao pó retornarei. Isso foi um fator.
Outro foi ler a notícia de que 257 crianças morreram por causa da ofensiva israelense. 257 crianças morreram, 1080 ficaram feridas, e ainda 760 palestinos e 10 soldados israelenses perderam a vida segundo a ONU, esta prestigiadíssima, poderosa e útil instituição.
Pode, portanto, haver algo mais atual e relevante do que o “Triunfo da Morte” de Brueghel? Só se for a “Parábola dos Cegos”, do mesmo Brueghel, que descreve à perfeição o caminhar do ser humano no século XXI: um cego guiando outros cegos e todos rumando, céleres, em direção ao abismo e à catástrofe. E é infinitamente triste imaginar que vivemos numa era em que uma pintura de um homem do século XVI, ainda com um pé na Idade Média, consiga ser pertinente por tratar da morte em escala industrial e por trazer para o primeiro plano a titânica irracionalidade do ser humano. Temo que Brueghel continuará sendo atual e relevante por muito tempo ainda.

About the author

Marcos Schmidt

Marcos Schmidt é designer gráfico e ilustrador. Vive e trabalha na irremediável cidade de São Paulo.