Em estado de emergência

 Para não esquecer: o nome dessa coluna foi roubado de Clarice Lispector. Sempre que eu pego esse livro para ler e vejo aquele título, eu o leio para não esquecer. Menos porque seja uma ordem, e mais porque ali está um esboço do seu método: escrever é para não esquecer, é para prolongar o tempo “dividi-lo em partículas de segundos, dando a cada uma delas uma vida insubstituível”. Método que Clarice definirá explicitamente em A Hora da Estrela: “esta história acontece em estado de emergência de calamidade pública”.  

Para não esquecer estabelece um vínculo com a memória, não para viver a nostalgia do passado perdido, mas para fazer desse passado uma presença. E é de presença que se faz o presente e só a partir dele podemos pensar no futuro. De modo que, o que se escreverá aqui terá o sentimento de uma “saudade do futuro” – crônicas anacrônicas que juntarão passado e futuro para pensar aqui e agora.  
 
Para não esquecer é a tentativa de reavivar uma capacidade de sentir todas as coisas do mundo – os cheiros, as respirações, os sussurros, os gritos, as vozes. O que não chega a ser um privilégio; é, mais precisamente, um estado patológico, é puro pathos – é feito de e com paixão. Embora essa capacidade de sentir pareça profunda e íntima, ela só pode ser exterior. Então, ao invés de intimidades, falarei de extimidades. Porque, como dizia Paul Valéry, o mais profundo é a pele.  E é a partir deste fragmento de Valéry que Deleuze elabora uma leitura do acontecimento conceituando-o como o que nos toca, o que nos toca a pele e “é seguindo a fronteira, margeando a superfície que passamos dos corpos ao incorporal”. É do efeito produzido por esse incorporal que surge um acontecimento. Deste modo, os acontecimentos são infinitos e ilimitados e sua característica é a insistência. 
 
Para não esquecer é para falar disso que insiste. Do que insiste fantasmagoricamente para se reafirmar como acontecimento. Uma pura energia vital latente que pode irromper a qualquer momento. O que não deixa de ser uma forma de esperança, uma abertura ao devir. Daí a imagem que compõe esta coluna, da coleção Vanitas de Justine Reyes, que me foi apresentada pelo Fabiano Camilo. Em português, quando nos referimos a esse tipo de imagem dizemos “Natureza Morta”; em inglês diz-se “Still Life”, vida ainda. Porque ali ainda há vida, uma vida que sobrevive na imagem. O que nos cabe é retomá-la na sua contingência e devolver a ela possibilidades. Essa coluna falará, portanto, dessa relação intima entre arte e vida, entre literatura e vida. De uma nova forma de esperança, porque a literatura, já dizia Deleuze, é uma saúde. Ou ainda, em uma das definições mais bonitas de arte, que é de Hélio Oiticica: ela cria possibilidades de vida. 
 
Para não esquecer não significa que a amnésia não seja um bom remédio. Mas, que é preciso lembrar para esquecer ou na boa fórmula freudiana: recordar, repetir, elaborar. Porque os acontecimentos se dão nesse amor de transferência, nos efeitos que projetamos e recebemos, com quem estabelecemos as trocas. Mas isso não quer dizer que escolhemos nossos destinatários: eles são o mundo. Pura projeção e receptividade, os acontecimentos contêm certa alienação de um estado de graça, um estado transitório de felicidade. Que não é um estado de espírito, ao contrário, ele se condensa na materialidade do corpo, na profundidade da pele. 
 
Para não esquecer entende, como María Zambrano, que a ruína é uma metáfora da esperança. Mas não esquece que a ruína surge da catástrofe que se anuncia todos os dias e que ela também é uma forma de acontecimento. Essa coluna é assinada por mim, mas tem a autoria do tempo e das imagens, porque o que vemos também nos olha. O que ela pretende é, à maneira sugerida por Walter Benjamin, ler Still Life, ao invés de Natureza Morta; potencializar o presente.   
 
Para não esquecer é uma homenagem a Clarice Lispector e será escrita de acordo com seu método: em estado de emergência.
 
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Flávia Cera