O jornalismo-terror da revista ‘Época’ (ou como não fazer pseudojornalismo)

O sociólogo Pierre Bourdieu tem uma visão da sociologia de que gosto muito. Ele compara a sociologia a um “esporte de combate” (vejam o filme), porque serve justamente para explicitar e, a partir disso, combater, dominações, desigualdades, ideologias e violências. Se a sociologia é um esporte de combate, acho que a crítica à ideologia reproduzida pela mídia é uma de suas modalidades. É preciso desconstruir o discurso midiático porque seu objetivo é reforçar e manter as relações sociais exatamente como se apresentam hoje, com seus preconceitos, desigualdades e injustiças.

Acho que não chega a ser novidade para ninguém que os interesses econômicos mais robustos – que andam de mãos dadas com os interesses políticos mais conservadores e dominadores – sustentam a mídia tradicional. Mas contentar-se com essa explicação é ser muito simplista. Essa associação se desdobra em uma infinidade de aspectos do discurso jornalístico.

Assim como no esporte de combate o atleta procura usar a força do adversário como alavanca para sua força. É só explicitando cada um dos aspectos ideológicos do discurso, que constituem a força da produção midiática – a frase torta, a construção ideológica de cada matéria, a argumentação falaciosa perdida no texto – que é possível enfraquecer o poder exercido pelos meios de comunicação.

Ontem estava procrastinando no Twitter quando meu amigo Fabiano Camilo, blogueiro de O Pensador Selvagem, me mandou o link da capa da revista Época desta semana. Oportunidade melhor para exercer o esporte de combate que é a crítica à mídia, impossível.

A capa mostra a presidenta Dilma Rousseff de olhos fechados e em uma pose estática toda cercada por um fundo preto. Pode-se dizer que ela está morta. A reportagem de capa promete desvendar segredos sobre “A saúde de Dilma”, porque a revista diz que “teve acesso a exames, lista de remédios e relatos médicos” e que “seu estado exige atenção”. Expressões que pretendem conotar que: 1 – se existe sigilo, há algo a ser escondido; 2 – se exige atenção, algo não vai bem; 3 – se só a revista teve acesso, só ela pode revelar o que está sendo escondido.

Informações sobre a saúde de um paciente são totalmente sigilosas e, portanto, a revista Época, da editora Globo, obteve as informações de forma ilegal. E desde já acredito que uma investigação deveria ser feita sobre isso. Porque um meio de comunicação que opera ilegalmente não está exercendo a liberdade de imprensa e sim um crime.

Mais do que um crime, o que se percebe no discurso dessa “reportagem” (entre aspas, porque tenho sérias dúvidas sobre a adequação desse termo para o material publicado) é um desejo de criar um fato, sustentá-lo com frases falsamente objetivas e informativas e disseminar uma imagem de que a presidenta é uma mulher à beira da morte.

Destaco entre aspas e em itálico algumas frases do site da revista. Sobre a pneumonia que a presidenta teve no fim de abril, diz o texto: “segundo palavras que ela mesma disse, de acordo com um interlocutor de confiança, teria sido ‘a pior de todas as doenças que já enfrentei’”. Na legenda de duas fotos que mostram Dilma em dois momentos de saúde frágil, a frase atribuída a ela, também citando como fonte “interlocutores” é “a pneumonia foi pior que o câncer”.

Deixando de lado o mérito da citação que vem de um dos interlocutores (e que pode ser falsa, inexata e até mesmo inexistente, pois “interlocutores” não significa nada, pode ser qualquer pessoa, de qualquer grau de relação com Dilma), uma frase como qualquer uma dessas, se foi mesmo dita por Dilma, poderia ser também um mero desabafo. Tanto eu como você quanto qualquer pessoa à nossa volta já usou frases exageradas assim para se referir a uma doença. E isso nada significa. Mas a tentativa da revista de inventar uma situação com a qual o leitor acredite que seja preciso se preocupar é muito mais forte do que o desejo de produzir jornalismo de qualidade. E para perceber isso basta observar que a legenda da foto atribui a Dilma uma frase muito mais terrível do que o texto: “a pneumonia foi pior que o câncer”. Claro, muitas pessoas leem apenas a legenda da foto, os títulos e olhos das reportagens.

Mais adiante, o texto diz que medidas adotadas para combater a pneumonia de Dilma foram “recursos usados em casos graves”. Nenhum – repito – nenhum médico ou especialista em medicamentos é citado como fonte dessa afirmação. Esse é o típico caso da argumentação falaciosa perdida no texto que mencionei acima. Uma afirmação sem o menor indício de ser verdadeira, mas que associada a nomes de substâncias químicas e medicamentos que os leitores desconhecem assume um tom de verdade.

“Assessores próximos contam que a doença afetou a disposição da presidente e seu estado psicológico. Ela sentia cansaço e falta de ar.”
Bem, quem já teve uma gripe forte, por mais saudável que seja, já sentiu tudo isso e até mais. O trecho é só mais uma redundância, técnica básica do jornalismo para reforçar uma ideia quando faltam elementos concretos para comprová-la, no caso a ideia de que temos alguém muito frágil no comando do País.

Um destaque especial da “reportagem” para o quadro com o “coquetel de remédios” (uma expressão por si só carregada de ranço cientificista para significar que o problema de saúde, seja qual for, é sério). Na lista entram curcumina, cartilagem de tubarão, óleo de linhaça, FiberMais que não são medicamentos. Logo, só estão na lista para aumentá-la e torná-la mais impressionante.

O site da revista reproduz trechos de um boletim médico emitido especialmente a pedido de Dilma pelo Hospital Sírio-Libanês que atesta que não há nenhum motivo para preocupação com o estado de saúde da presidenta. E é aí que a própria revista dá uma dica de que tudo o que veio antes é uma grande bobagem: “Mas as informações obtidas por ÉPOCA revelam que a saúde da presidente ainda exige atenção. Não por causa do câncer. Mas em virtude de preocupações naturais para uma mulher de 63 anos. Dilma convive com vários problemas que consomem energia.”

Sim, Dilma exige todos os cuidados de saúde que qualquer mulher (ou homem, diga-se de passagem, mas vou deixar passar essa para o texto não se alongar muito) exige. Então, por que fazer uma matéria de capa? Por que usar uma foto assustadora? Por que divulgar  informações sobre a saúde de uma pessoa que, como paciente, tem o direito de ter todos os resultados de seus exames mantidos em sigilo? (E, só para deixar claro, esse sigilo não se deve ao fato de a pessoa em questão ser chefe de governo e de Estado. Todos nós temos direito a esse sigilo diante de nossos empregadores, familiares, amigos e opinião pública.) Por que ocupar páginas e páginas com elocubrações, conclusões, suposições sem o embasamento de uma única fonte qualificada, isto é, um médico?

É óbvia a tentativa de Época de criar um fato inexistente para desestabilizar não só o governo mas, principalmente, a confiabilidade e a segurança das pessoas em relação à presidenta Dilma e sua atuação. Na minha opinião, a editora Globo só conseguiu uma coisa: mostrar que publica informações irrelevantes, trabalhadas de maneira incompetente até mesmo para seus próprios objetivos, e que age ilegalmente. É o jornalismo-terror que atua sem escrúpulos, sem ética, sem regras. Todos sabemos que os interesses econômicos e políticos mencionados no início do texto não estão satisfeitos com Dilma no poder. Mas até o pseudojornalismo feito para defender tais interesses já produziu material mais consistente em suas falácias. Para Época, nota zero em pseudojornalismo e em credibilidade.
 

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Beauvoiriana (aka Literariamente)