Civilização É Barbárie


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Todos os dias, a caminho do trabalho, passo em frente ao painel de azulejos da foto. Fica do lado de fora da Escola Estadual Marina Cintra, na avenida da Consolação, em São Paulo. A obra é de 1942, uma criação de Antonio Paim Veira (1895-1988), militante dos movimentos nacionalistas de então, um dos participantes da Semana de Arte Moderna, ceramista e pintor de renome. A imagem reflete um modo de ver o mundo que aprendemos muito cedo, nas primeiras aulas de História do Brasil: a catequização trouxe o progresso à nossa terra, então recém-descoberta.

A sociologia desconstrói essa interpretação e permite ler ali o padrão ideológico que diz: a civilização domina, com cordialidade, a barbárie. O jesuíta – há quem diga que é José de Anchieta –, guardião do conhecimento, do bem, do progresso, da segurança e da ordem, leva a civilização (a alfabetização, a cruz que traz na mão esquerda) aos curumins que leem, interessados e concentrados, seus livros. Os pequenos bárbaros estão salvos. Não é por acaso que o civilização tem a forma de um homem vestido (e não uma mulher), religioso (e não leigo), adulto (e não criança ou adolescente). Já a barbárie são os índios, crianças e nus. A ideologia que a imagem representa é a do homem branco, mestre e possuidor da cultura, que conduz a natureza – os índios “primitivos” – pelo “processo civilizador”. Mas há um detalhe: as manchas de tinta vermelha e pichações que borram o painel. 

É quase um ritual diário: meus olhos se desviam para o painel quando chego àquele trecho da avenida. A interpretação sociológica me inspira revolta contra as instituições que colocam uma imagem dessas no muro de uma escola. Imagino várias gerações de alunos enchendo suas cabecinhas com a certeza de que a civilização domina a barbárie. E nunca deixo de sentir a mesma simpatia pelo autor do que muitos chamariam de “ato de vandalismo”, mas que eu chamo de “ato de intervenção”. Ele manchou a civilização de sangue.

Um outro modo de olhar a questão talvez possa ser buscado em Freud e sua teoria das pulsões de vida e de morte. Resumindo e simplificando muito, essa teoria (a versão completa você pode conferir em O Mal-Estar na Civilização, pdf no texto anterior desta coluna), diz que a agressividade – pulsão de morte – está dentro de todos nós e, mais do que isso, que ela anda de mãos dadas com o amor – a pulsão de vida.

A barbárie é interior a todos nós e, portanto, não é o fato de alguém ou algum grupo ser “bárbaro” que justifica a adoção de uma medida “civilizadora” em relação a ele. O que justifica a ação e o discurso “civilizador” é o fato de que, como civilizados, levamos a barbárie dentro de nós, mas, em nossa luta contra esse mal, não queremos admitir isso. Aquele a quem chamamos “bárbaro” é, na verdade, aquele que evidencia nossa barbárie interior, que não conseguimos aceitar. Por isso, lançamos mão de medidas civilizadoras: a catequização é uma delas. A guerra contra o terror, a guerra santa na versão de qualquer religião, a guerra para levar a democracia a todos os países também. Medidas civilizadoras que consistem em assassinar pessoas ou em reduzi-las a objetos são manifestações da barbárie no interior de nós mesmos e mostram que civilização é, também, barbárie.

E mais do que isso: civilização é barbárie na guerra e na exceção, mas também na vida cotidiana, em acontecimentos aos quais, talvez, não estejamos acostumados a dar atenção: por exemplo, atirar tinta numa obra de arte. O anônimo autor das manchas no painel, com seu “ato de vandalismo”, talvez tenha dado um passo para o lado da civilização. O gesto brusco de atirar tinta vermelho-sangue na parede muda o modo de olhar a obra e revela a todos que passam pelo painel algo além do que estamos treinados a ver. “Se a civilização domina a barbárie”, ele parece nos dizer, “vejam que faz isso impondo morte, dor, sofrimento e sangue a alguém.” Ele evidenciou que levar letras e cruzes ou outros símbolos de civilização a qualquer lugar ou povo é, também, fazer chegar ali a barbárie. E a melhor forma de não sucumbirmos a nossa barbárie interior é reconhecê-la e aprender a lidar com ela.

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Beauvoiriana (aka Literariamente)