Espaço Transfigurado By Laio Bispo / Share 0 Tweet Subverter a palavra, re-significar, fissurar premissas. A escrita de Julio Cortázar é contraponto, avesso, dês-foco, litígio, oposição à suposta ordem do real. No entanto, para Cortázar opor-se à ordem do real não significa, como para outros autores, desvincular-se dos acontecimentos que dizem respeito à realidade e aos paradoxos, e ocasionais absurdos, que a envolve. Paradoxo e não-senso são matérias primas do fazer literário de Julio Cortázar. A maneira como distribui e propõe temas sugere não uma interpretação, mas, antes, uma experimentação singular de fluxos que compõe o ato literário a partir de fragmentos da realidade cujas problemáticas compõem um conjunto extenso de constelações-problema. A singularidade com que envolve e faz dissipar as mais variadas, e comuns, absurdidades da existência cria, para além de um estilo, um jogo de sentido cujo estilo literário é suporte e não antes um imperativo – a vida enquanto matéria prima; o fazer literário como experiência e experimento secundário. O jogo de sentido criado pelo autor faz visualizar a existência de uma lógica, seja ela interna ou externa, dos acontecimentos; essa lógica do sentido – ou mesmo a ausência dela – leva o autor a proceder a partir do entendimento do não-senso pensando, assim, como Deleuze: “o sentido é uma entidade não existente, ele tem mesmo com o não-senso relações muito particulares.”. Essas relações particulares, vinculadas literariamente, tornam a escrita um emaranhando ilógico, onde o sentido caminha num ritmo louco que lhe convém. Um discurso enlouquecido que cria sentido e sugere possibilidades interpretativas. Assim, o ilógico e o não-senso produzem, mediante proposital dês-foco, torções e novos enviesamentos de problemáticas que estão, quase sempre, a mercê da integridade velada pela normalidade e pelo bom-senso. Sobre a inexorabilidade do ilógico escreve, assertivamente, Nietzsche Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário para o homem e de que o ilógico nasce muito bom. Ele está tão firmemente implantado nas paixões, na linguagem, na religião e em geral em tudo aquilo que empresta valor à vida, que não se pode extraí-lo sem com isso danificar irremediavelmente essas belas coisas. São somente os homens demasiadamente ingênuos que podem acreditar que a natureza do homem possa ser transformada em uma natureza puramente lógica; mas se houver graus de aproximação desse alvo, o que não haveria de se perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa outra vez, de tempo em tempo, da natureza, isto é, de sua postura fundamental ilógica diante de todas as coisas. (1999, p.75) São, basicamente, duas as questões envolvidas na estética literária criada pelo autor, a saber: o Ilógico e criação de uma lógica do sentido. Estas relacionam-se, por vezes paradoxalmente, de maneira muito peculiar na criação de perceptos. Sendo, como nos diz Deleuze, essa lógica do sentido dada a relações particulares com os paradoxos, não é senão através desses inevitáveis encontros com o extraordinário que Cortázar afirmar a potência de suas séries heterogêneas. O ilógico não exclui a lógica do sentido que, por sua vez, não se dá de outra maneira senão mediante sua relação com o ilógico – o não senso. O realismo fantástico só é possível em uma superfície-de-estranhamento que possibilite o enfrentamento do outro – ou, o estranho que possibilita o fantástico em ato. Assim Cortázar faz crer na real existência da Rua Humboldt – endereço que, em certa medida, habitamos – e na família que ali vive e se dedica a estranhas ocupações; aliás, é essa família que nos é íntima, em maior ou menor intensidade, por suas monstruosidades cotidianas tão fraternamente reais. Histórias de Cronópios e Famas, e seres-outros, que nos dão idéia de uma espantosa, porém fantástica, realidade. De maneira muito singular, Cortázar nos propõe revirar, em meio ao diverso, as possibilidades de uma razão enlouquecida que se quer nova. Assim, ele lança a imaginação na fervura dos acontecimentos. O que, em última análise, demonstra sua magistral capacidade de articulação entre o imaginativo e o real. BIBLIOGRAFIA: DELEUZE, G. Lógica do Sentido. 4. Ed. Trad. De Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2007. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Coleção os Pensadores – Humano Demasiadamente Humano – um livro para espíritos livres. – 5.ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1999.