Uma Viagem Fantástica – O Cinema Que Georges Méliès Criou

Como já mencionei em instâncias anteriores dessa coluna, a criação do que hoje se entende como cinema não foi tanto um projeto deliberado, mas o resultado inesperado da junção de fatores diversos… Principalmente o encontro entre inventores e engenheiros desenvolvendo tecnologia fotográfica para “pesquisas sérias” com uma cultura nascente de entretenimento de massa, manifestada nos populares espetáculos de vaudeville. E, na Paris de fins do século XIX, ninguém era maior no vaudeville que Georges Méliès. E, em breve, ninguém seria maior no mundo do cinema tampouco.

George Méliès bate um papo com Georges Méliès

Méliès era o caçula de uma família abastada de empresários, que teve acesso à educação de primeira linha e, esperava-se, estava destinado a assumir um cargo de gestão na fábrica de sapatos do pai. Não era, porém, o que ele queria. Desde a juventude, Méliès demonstrava interesse pelas artes e, tendo um talento particular para a ilustração, tentou ingressar na legendária Escola de Belas Artes de Paris. A negativa do pai em financiar o projeto matou aí esse sonho, mas seria incapaz de frustrar definitivamente a imaginação do jovem artista. Nas horas livres em que não estava ajudando a gerenciar o negócio da família, Méliès passava o tempo na Galerie Vivienne, onde se reuniam os teatros, lojas e espetáculos que animavam as noites do populacho e da burguesia francesas. Lá, o jovem começou a aprender mágica e como produzir e realizar um espetáculo e, após um matrimônio que lhe garantiu uma fortuna própria significativa, Méliès comprou o Teatro Robert-Houdin, e começou a fazer os próprios shows.

Em matéria de show business, um espetáculo de vaudeville seria o equivalente a uma luta de vale-tudo. O objetivo era entreter uma plateia frequentemente bêbada, não raro mal-educada, através de qualquer meio disponível ou necessário. Esquetes cômicos curtos eram comuns, assim como canções e dança, na linha do burlesco. Mas também bastante comuns eram as apresentações de mágica, que não raro eram decoradas com falas prontas, discursos e visuais que remetiam à temas satânicos ou fantasiosos. E Méliès se destacava nesse campo, criando novas mágicas e arte cenográfica inovadora e surpreendente. Seu teatro logo demonstrou ser um sucesso comercial, e foi por isso que Méliès foi convidado, em 1895, para participar de uma exibição exclusiva para os principais donos de casas de show de Paris de um novo aparelho criado pelos Irmãos Lumière… Era o cinematógrafo.

Todo mundo percebeu de cara que a adição de projeções de filmes seria uma ótima fonte de lucros para seus negócios. Mas os Lumière eram ciosos de que sua recém-inventada tecnologia fugisse de suas mãos, e negaram vender o cinematógrafo para os homens de negócio presentes, apesar de ofertas vultuosas de dinheiro. Isso porém não desestimulou Méliès. Partindo de um aparelho semelhante de origem inglesa, o animatógrafo de Robert Paul, e com um pouco de engenharia reversa, Méliès conseguiu desenvolver um aparelho que lhe permitia gravar e exibir filmes por conta própria. E, em 1896, ele já estava produzindo os próprios filmes, estreando suas primeiras produções quase ao mesmo tempo que a pioneira Alice Guy e a Gaumont.

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Os primeiros filmes de Georges Méliès não tinham nada de muito especial… mas até, também não precisavam ter. A novidade era ter imagens se movendo na sua frente: isso bastava. Com o passar do tempo, porém, começou a surgir a necessidade de cativar o público com algo mais. Compreensivelmente, Méliès começou investindo no registro de espetáculos de mágica, mas não demorou para começar a ousar… E disso resultaria sua enorme contribuição à história do cinema e à linguagem cinematográfica.

Méliès, assim como todos outros cineastas de sua época, produziu várias comédias e “reencenações”… um gênero de filme hoje abandonado, que consistia em recriar eventos do passado ou atuais, com um declarado propósito documental ou jornalístico… Mas a grande sacada do pioneiro francês, e a principal fonte de seu sucesso, eram mesmos as chamadas “féeries“, termo francês para “conto de fadas” mas que também se aplicava a qualquer história de fundo fantasioso. E, de fato, os filmes de Méliès ficaram famosos pelo compromisso com o maravilhoso, o que foi possibilitado por investimentos sérios em infra-estrutura material para produção de filmes: foi construído um vasto estúdio no subúrbio de Paris, equipado com quantidade de material cenográfico que era desconhecida em qualquer produção cinematográfica até então. Nesse mundo de cenários decorados, fantasias, tinta e linha de costura, Méliès daria vida à corpos celestes, demônios, alienígenas, gigantes e fadas, e muitas outras criaturas, e heróis, e vilões, dos mais variados tipos… E seria ali que ele criaria a primeira grande superprodução do cinema: A Viagem à Lua (La Voyage Dans La Lune, 1902).

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Muito male-male inspirada por Jules Verne e H.G. WellsA Viagem à Lua conta a história do audacioso Professor Barbenfouillis que, contra protestos da vetusta sociedade dos astrônomos da qual faz parte, decide arriscar uma viagem ao satélite terrestre, acompanhado de um grupo de aventureiros. Sua nave, atirada por um gigantesco canhão, acerta a lua bem no olho (criando uma das mais icônicas imagens da história do cinema) e lá eles acabam enfrentando os Selenitas, ETs picarescos que se desintegram ao serem atingidos por guarda-chuvadas… E acontece que nesse truque simples, em que um ator vestido de alienígena se dissolve no ar em um monte de fumaça, reside a segunda grande contribuição de Méliès à cinematografia. Além de ter criado o conceito do filme com altos valores de produção, antecessor de todo blockbuster de hoje em dia, Méliès também foi o inventor dos efeitos especiais.

Como qualquer fotógrafo pode atestar, quando você mexe com filme e não sabe o que está fazendo (ou sabe), coisas estranhas acontecem. Pessoas transparentes podem aparecer no meio da sala, ou objetos que deveriam estar de um lado da cena aparecem do outro… ou se duplicam. São resultados de dupla exposição, uma técnica de fotografia, e filmagem, que já era bem conhecida antes do cinema surgir. A introdução do filme, e por conseguinte, do tempo na fotografia, trouxe ainda todo um repertório de novos truques: o stop trick, em que a câmera para de gravar e retoma depois que atores e objetos de cena foram trocados no cenários, permitia que personagens e toda sorte de artifício aparecesse e desaparecesse de repente no filme; reverse shot fazia o tempo voltar para trás… bastando para isso inverter a ordem dos quadros do filme na hora de revelar; e, ao movimentar a câmera para frente e para trás imperceptivelmente durante a gravação, era possível criar gigantes, e diminutos gnomos…

Segundo a lenda, o primeiro passo para chegar nisso tudo foi um acidente: enquanto gravava um prosaico registro de uma rua movimentada em Paris, a filmadora encrencou e, quando foi revelar o filme, Méliès observou pasmado um grupo de mocinhas que atravessava a rua se transformar em um ônibus. Uma história encantadora, mas também improvável. Méliès já fazia truques óticos em sua época de mágico e tentar repeti-los e expandi-los com uma câmera deve ter sido uma das primeiras ideias que ele teve. E foi uma das poucas coisas no mundo que podem ser com toda honestidade chamada de ideia de gênio. A técnica do matte, por exemplo, em que uma tela é usada para preservar parte do filme sem nada de significativo sendo gravado em cima… o que permite que depois outra cena seja inserida, possibilitando uma enormidade de efeitos visuais… foi aperfeiçoada para o cinema por Georges Méliès, e passou a ser imediatamente aplicada em filmes de todos os gêneros por todo mundo. E é a ancestral direta das atuais bluescreen e greenscreen (que, no fim das contas, não são nada mais que mattes, só que pensadas para a aplicação de efeitos especiais por via digital, e não fotográfica).

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Méliès produziu uma boa centena de filmes, hoje em dia em domínio público. Além de A Viagem à Lua, ele também foi responsável por iguarias brilhantes como O Diabo Negro, Viagem Através do Impossível, O Reino das Fadas, Barba-Azul, As Quatrocentas Farsas do Diabo… E o mais fascinante não é apenas o seu uso de técnicas de efeitos especiais mas a forma como, na tradição de um bom mágico, ele inseria de forma criativa esses efeitos no contexto de histórias encantadoras e assombrosas, decoradas e contadas por visuais espantosos, que deram origem  a gêneros de cinema tão populares quanto terror, ficção científica e aventura. Ele não foi bem um inovador na linguagem cinematográfica propriamente dita… Seus filmes nunca fugiram do plano panorâmico que imitava a posição de um espectador no teatro, comum no Primeiro Cinema, e não raro filmes de Méliès são usados para ilustrar a falta de continuidade temporal e espacial despropositada comum antes do desenvolvimento das teorias de montagem. Mas isso é uma nota de rodapé diante de uma produção monumental em escopo e ambição, que produziu obras-primas do cinema que são genuinamente divertidas de se assistir até hoje. Se o cinema um dia terá artistas cuja relevância será capaz de resistir a passagem de séculos, como a literatura e a pintura, bom, Georges Méliès já é um deles.

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O mais gentil seria ter encerrado a história no último parágrafo… afinal de contas, para ter um final feliz o segredo é parar de contar a história. Mas existe uma coda que acho importante na história de Méliès, e que para ser compreendida, é necessário saber como ele acabou.

Apesar de ter sido o responsável pelo primeiro grande

sucesso da indústria cinematográfica com A Viagem à Lua (primeiro grande sucesso de pirataria também), e ter tido uma produção financeiramente muito bem-sucedida por mais alguns anos, Méliès não se adaptou bem às mudanças de gosto que se seguiram nos anos seguintes ao início do cinema. Até por questões de negócios (sobre as quais falarei mais no futuro), a produção cinematográfica começou a se afastar dos temas mais burlescos e fantasiosos, que cheiravam à vaudeville, e o público seguiu, migrando seus interesses para os melodramas e os westerns (que, na época, tinham um contexto documental… o Velho Oeste ainda existia!) As féeries não davam

Um monstro de gelo ataca os corajosos exploradores, em A Conquista do Pólo

mais lucro, embora a criatividade de Méliès ainda fosse capaz de criar espetáculos visuais impressionantes como A Conquista do Pólo, com seu colosso de gelo movido à 12 contra-regras nos bastidores… Para piorar, veio a Primeira Guerra Mundial, acompanhada de racionamento, bens de sua produtora confiscadas para o esforço de guerra, uma forte contração econômica e um certo desânimo da população com relação ao otimismo de temas de fantasia. Em 1914, Georges Méliès faliu, e suas propriedades foram penhoradas para pagar dívidas com a distribuidora Pathé. Resolvido a não permitir que a empresa francesa lhe tomasse os filmes, Méliès tacou fogo nos negativos que possuía, o que explica porquê, apesar de seu grande sucesso, existem filmes dele que estão perdidos até hoje… talvez, para sempre. Ironicamente, muitos dos filmes que restam são frutos graças à cópias piratas feitas na época.

Reduzido à pobreza, Georges Méliès nunca mais fez nenhum filme, e passou a sustentar a si e à família vendendo doces na estação de trem de Paris. No final da década de 20, sua obra e suas contribuições para o cinema começaram a adquirir o devido reconhecimento e, graças à intervenção dos cineastas franceses, Méliès conseguiu ser acolhido no Retiro do Cinema e do Espetáculo, uma casa de repouso dedicada aos veteranos da indústria de entretenimento francesa. Lá, Méliès ficou bastante próximo do historiador e crítico de cinema Henri Langlois, que o visitava constantemente e o apresentou à então atual geração de cineastas franceses. Em 1936, Henri Langlois e o diretor René Clair compraram um galpão para guardar suas vastas coleções de rolos filmes, e contrataram Méliès para ser o primeiro zelador do lugar… Anos depois, esse galpão viria a ser a Cinemateca Francesa, de onde surgiria a Nouvelle Vague.

Georges Méliès morreu em 1937. Em sua última mensagem para o amigo Langlois dizia “Riam, amigos. Riam comigo, riam de mim, pois eu sonhei os sonhos de vocês”.

About the author

Felipe Damorim

Felipe Damorim se formou em uma faculdade, e desistiu de outras duas. Editou livros, publicou contos, manteve blogs e dirigiu filmes. As pessoas dizem que gostaram de tudo, pelo menos na cara dele.