vértebra primeira: a singularidade

 “como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? ars erotica, ars theoretica, ars politica.”

(michel foucault)

 

 … ei de começar pelos entremeios, pelas fendas, pelas rachaduras, pelas frinchas, frestas, gretas, ranhuras e covas. aqueles lugares nos corpos que desestabilizam a continuidade dos caminhos ordenados. os corpos têm disso, são habitados por infinitas partículas de rupturas da ordem. podem estar em todo lugar, às vezes óbvias e o provocativas, outras vezes misteriosas e furtivas. podem ser aquele entremeio de lábios de uma boca apaixonada ou as micros fendas dos poros das axilas que exalam um cheiro inebriante no corpo suado de excitação. podem ser os entrededos do pé direito, as estrias a enfeitar o quadril, duas provocativas covinhas numa coxa gorda, a delicadeza do frênulo do prepúcio de um pênis pequeno, uma cicatriz de infância no joelho, a aspereza da pele sob o períneo, as celulites a enfeitar as nádegas et cetera…. et cetera.

essas ranhuras, são as rasuras do óbvio. não tem nada menos erótico do que o óbvio! quando falo do óbvio não estou falando do repetido, do cotidiano, do comum (três coisas que podem sim ser repletas de erotismo!), mas do não-singular. erotismo tem a ver com percepção da singularidade, ou melhor, como a fruição dos desejos e a descoberta e invenção de prazeres com o encontro com a singularidade. o óbvio é apagamento da singularidade que produz uma fantasia fácil de compreender – aí o mistério acaba e o erotismo foge e se suicida pulando entediado da janela do quarto. essa fantasia é o modelo, o padrão, o corpo musculoso de pinto grande arrombador, o corpo sem-estria/com-photoshop da ex-bbb na playboy, o corpo sem cheiro, sem pelos, sem gosto próprio, sem jeito próprio, que performa o vídeo pornográfico e o mandato do ter-que-ser-bom-de-cama-para-contar pros amigos depois. que chato! e não estou falando de piolhos pubiano, mas da chatura da falta de singularidade que produz um corpo sem história, sem marcas, sem detalhes particulares, o corpo sem nada, o corpo sem corpo. abrir-se para o erótico tem a ver com abrir-se para o risco de descobrir que o corpo é infinito em suas possibilidade. o corpo é o lugar das experiências, das invenções e principalmente das conexões.

ao optar pelo óbvio e contra o erótico, minamos a possibilidade de estabelecer conexões com o nosso corpo e em nosso corpo. mesmo que haja penetrações, ejaculações, elogios ao desempenho da parceria, altos gritos e gemidos de um suposto prazer que acorda a vizinha chata do apartamento 610 de madrugada, não houve encontro e nem troca. só há troca quando as singularidades se esbarram, quando a língua se arrasta lenta nas fendas e verte saliva sobre elas na fruição de um desejo encantado por sentir o que nunca tinha sentido, por experimentar o que nunca tinha experimentado. 

a primeira vértebra dessa coluna é a singularidade.

e a poesia de hoje é de leila miccolis.

 

 

Estar entre teus pêlos e dedos, 

entre tua densidade,

neste transpirar sob medida

aos teus gemidos.

Estar entre teus trópicos,

entre o teu desejo e o meu prazer;

beber parte de teus líquens e teus rios

percorrendo-te da foz até a origem,

e pura a cada amor partir mais virgem.

(“Poema ao mais recente amor”, Leila Miccolis)

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(fe)lipe areda