Cinema Atemporal By Ana Al Izdihar / Share 0 Tweet Aprendemos que somos errados o tempo todo e que não adianta tentar mudar o que está errado, pois é o que somos que nos leva à ruína… Este ano se comemora 40 anos de “Perdidos na noite” (Midnight Cowboy, 1969, John Schlesinger). Um filme perturbador, bonito, com atores grandiosos e sempre atual. Toda vez que o revejo, não consigo evitar a comparação de Joe, o cowboy ingênuo com o personagem Judas Obscuro de Thomas Hardy. Judas é um rapaz do interior, cujo sonho era estudar numa universidade famosa de Londres e se tornar um acadêmico. Judas assim como Joe é totally wrong… Contudo, gostaria de fazer paralelos deste filme com uma outra fonte mais pertinente no momento – já que não sei se todos vocês leram “Judas Obscuro”. Esta outra fonte é o mais recente hit da banda Depeche Mode chamada Wrong. Esta letra é, usando uma frase do nosso amigo Rafael, um soco no estômago! E acho que expressa justamente a alma torturada do homem contemporâneo, do mesmo modo que “Perdidos na noite”. Depois de prestar a atenção nessa música não conseguia parar de relacioná-la com o filme em questão! Tão torturante quanto, tão deprimente quanto, tão questionadora quanto… Sem desmerecer a lindíssima canção tema do filme pela triste gaita de Toots Thieleman e a famosa “Everybody is talking” de Nilsson. Veja: I was born with the wrong sign In the wrong house With the wrong ascendancy I took the wrong road That led to the wrong tendencies I was in the wrong place at the wrong time For the wrong reason and the wrong rhyme On the wrong day of the wrong week I used the wrong method with the wrong technique Wrong, wrong There’s something wrong with me chemically Something wrong with me inherently The wrong mix in the wrong genes I reached the wrong ends by the wrong means It was the wrong plan In the wrong hands The wrong theory for the wrong man The wrong eyes on the wrong prize The wrong questions with the wrong replies Wrong, wrong I was marching to the wrong drum With the wrong scum Pissing out the wrong energy Using all the wrong lines And the wrong signs With the wrong intensity I was on the wrong page of the wrong book With the wrong rendition of the wrong look With the wrong moon, every wrong night With the wrong tune playing till it sounded right yeah Wrong (too long), wrong (too long) (Depeche Mode, “Wrong”, in “Sounds of the Universe”, 2009) Aquele realismo cinematográfico que comentava antes em outros textos tem sua expressão em técnicas puramente artísticas, sem efeitos especiais, somente confiando no olhar fotográfico, no talento dos envolvidos. Os closes dos filmes dos anos 60 e 70, a saber deste e dos filmes de Polanski, de Kubrick são uma ferramenta extraordinária explorada com muita astúcia. Com eles as expressões eram captadas sem dó do espectador e aliados a recursos de maquiagem (ou falta dela) davam um toque sentimental e incômodo às cenas. Veja no começo de “Perdidos” o colega de trabalho negro de Joe: sem maquiagem, dentes tortos, expressando sua maneira simples de ver a vida, sem muitas palavras: o close e o olhar gritam. E o captado olhar de menino assustado de Jon Voight comove e a parceria com o não menos talentoso Dustin Hoffman cortam qualquer coração. É dramático, mas jamais piegas. A cidade pacata onde Joe nasceu, sua avó (suspeitíssima), sua namoradinha maluca e frígida formam um cenário ao mesmo tempo selvagem, natural e cercado de repressão religiosa. Joe sente que nasceu no lugar errado e seu “talento” – dar prazer às mulheres – parece não ter valor nesse mundinho provinciano. Porém, ao longo de sua busca ele segue cego e de ego inflado, tentando sua teoria errada, para atingir os fins errados, através dos métodos errados, na hora errada, no lugar errado com as pessoas erradas… I was born with the wrong sign In the wrong house With the wrong ascendancy I took the wrong road That led to the wrong tendencies I was in the wrong place at the wrong time For the wrong reason and the wrong rhyme On the wrong day of the wrong week I used the wrong method with the wrong technique Ao chegar em Nova Iorque ele é a própria crítica ao “sonho americano”. Joe confronta seus ideais pessoais e os que fez a respeito da cidade grande com a realidade que lhe diz o tempo todo o quanto está errado. Seu grande coração e fé nos outros vai tomando porradas o tempo todo e somente nós espectadores vemos isso e pensamos: “Wrong! Wrong!” ou “Nossa, Joe! Como você está errado…” Ele não lia nas linhas da cidade que seu futuro seria igual ao homem caído na rua e que ninguém pára para ajudar: ignorado e apontado como o errado. I reached the wrong ends by the wrong means It was the wrong plan In the wrong hands The wrong theory for the wrong man The wrong eyes on the wrong prize The wrong questions with the wrong replies Joe encontra então outro errado: Ratzo. É de cara enganado por Ratzo que parece esperto. Mas a questão que fica é por que eles se unem depois disso. O Ratzo de Hoffman é a imagem da piedade! Meias que só têm o cano! Treme e você não sabe dizer se é de medo ou de frio. Ratzo convida Joe desesperadamente para sua casa. Não sabe o que fazer para agradar. Ali se vê dois homens decepcionados, com fome, com frio, extremamente solitários, mas que ainda têm algo de humano, de amistoso. Sentem que seus seres errados podem amparar um ao outro. São suas almas no fundo ingênuas que se encontram de modo errado. Wrong, wrong Wrong (too long) Wrong (too long) A moca de Ratzo é horrível! Uma geladeirinha desligada para manter as baratas longe dos alimentos perecíveis. Sem luz, sem calefação, num prédio condenado que o dono não pode alugar. Há um pôster da Flórida (lugar dos sonhos de Ratzo), fotos de laranjas bem coloridas, contrastando como o lugar fétido e a falta de comida. Passam a conviver quase como casal. Sempre sujos, passam a viver de furtos, um tomando conta do outro. Mesmo Ratzo com sua esperteza de rua, era ingênuo, especialmente com seu sonho sobre a Flórida; até nos seus sonhos ele aparece sujo. Ele não percebe que nasceu errado, seu pai era errado (que morreu engraxate, por fumar muito e foi enterrado sem conseguir limpar a graxa da mão), sua vida é errada e que não adianta mudar de lugar. Ao vermos Ratzo mancar, constatamos que ele não sabe mais nada da vida, nada mesmo… Nem está no compasso de si mesmo. There’s something wrong with me chemically Something wrong with me inherently The wrong mix in the wrong genes (…) I was marching to the wrong drum With the wrong scum Pissing out the wrong energy Using all the wrong lines And the wrong signs With the wrong intensity Depois de uma série de erros Joe parece cair em si e põe o amigo no ônibus para Flórida. Parece ter alcançado algum insight. De que não nasceu para aquilo, de que ele estava errado – I ain’t no hustler. Ratzo vai morrendo aos poucos, está paralítico. Se mija todo e dói por inteiro. Joe lhe compra uma camisa com palmeiras, como ele gostaria. Parece ter havido uma espécie redenção pela amizade, no último momento… Errado. I was on the wrong page of the wrong book With the wrong rendition of the wrong look With the wrong moon, every wrong night With the wrong tune playing till it sounded right yeah Suspiro e ainda choro com esse filme. Fico pensando o quanto os filmes ao longo da história do cinema já não conseguem ser tão bons como “Perdidos na noite” e que os atores também tomaram rumos errados… Ah, posso falar? Lamento ao ver que o filme mostra um tempo em que Hoffman ainda não era um estereótipo de si mesmo. E Jon Voight ainda não era uma sombra do que foi e não era humilhado pela filha ingrata (Angelina Jolie) que herdou sua beleza estética, mas nenhum pouco do talento. E jamais conseguirá passar aquela pureza nos olhos como ele, nunca!