Michael Jackson está morto: e daí ?

Considerações musicais mau-humoradas

 

 

 

 

 

 

O furor jornalístico desencadeado pela morte há poucas horas de Michael Jackson me traz de pronto um complexo de idéias que vez por outra me assola sempre que me deparo com o abismo existente entre a qualidade e a evidência de fenômenos do universo pop. Da última vez havia sido na cadeira de minha dentista.

 

Diante de minha pouco entusiástica preferência, dentre as opções oferecidas para me distrair durante um tratamento de canal, por um DVD de Eric Clapton ou de Elton John, em detrimento de um do Roupa Nova, Cristiane (assim se chama minha dentista) diligentemente buscou, no acervo de seu consultório, um da até então por mim ignorada Amy Winehouse – ao que imediatamente consenti no intuito de me ilustrar acerca de alguém cujas freqüentes referências em colunas de celebridades não me eram de todo estranhas.

 

Ouvindo de olhos fechados aquela musiquinha de clichês, imediatamente reconheço, a emoldurar aquela voz, a competência instrumental de praxe dos produtos pop, proveniente de uma banda em que predominavam músicos e cantores que adivinhei negros antes de vê-los pela excelência de seus dotes vocais (isto é racismo ?), tudo temperado com um leve acento jazzy, outro soul. O choque só veio com minha constatação, ao abrir os olhos, de que aquela voz gasta e de extensão modesta provinha não de uma diva madura do jazz ou do blues como Billie Holiday ou Janis Joplin, mas de alguém com apenas 26 anos de idade.

 

Devo salientar que a expressão da voz que eu ouvia não roçava, todavia, nem de longe aquela das supracitadas divas. Refiro-me, é claro, ao desgaste daquela voz – que Cristiane prontamente informou tratar-se de resultado de contínuos maus tratos auto-infligidos, profeticamente sintetizados na assertiva “Uma peste. Vai morrer logo.” Canal tratado, deixei o consultório feliz por, tendo conhecido uma cantora amplamente conhecida (e apreciada !) que me fora até então totalmente estranha, poder precaver-me contra o risco vir acidentalmente a ouvi-la outra vez e sem anestesia.

 

 

Aliviado, me sobreveio a antiga e insistente questão de por que alguém de sã consciência escolheria ouvir um aglomerado de clichês tão convencional, monótono, requentado e, sobretudo, produzido como Winehouse ao invés de vozes e músicas como, por exemplo, as de Ana Paula Silva ou Joni Mitchel.

 

 

A popularidade de produtos pop tais como o primeiro é alarmante se levado em conta que casos como os dois últimos – respectivamente, o de uma nova virtuosa desconhecida e o de uma diva esquecida de apenas 30 anos atrás – não se tratam de fenômenos esúrios mas, ao contrário, de apenas dois dentre uma enorme diversidade obscura de situações de excelência esquecida do passado ou nova ainda por ser descoberta pela maioria.

 

 

Hipóteses tenho algumas. Só não tenho é vontade de deitá-las agora: ressaca antecipatória ao espetáculo do culto jacksoniano em vias de dominar a cena nos próximos dias ? Me contento, então, por hora, em tentar despertar em você, caro leitor, a mesma perplexidade de que sou tomado quando confrontado com esta sorte de paradoxo. Quanto aos links para a irritante musiquinha de Winehouse, podem ser encontrados na rede em abundância pelos tão curiosos ou, neste quesito, ignorantes quanto eu.

 

Olhares privilegiados são lançados sobre o mesmo quadro degenerativo em http://rre.opsblog.org/2009/06/13/do-esquecimento/ e em http://miltonribeiro.opsblog.org/2009/05/22/rock-and-roll/. Ótima leitura e ambos os casos.

 

Update 11/7/09: torno a ruminar, à luz (ou seria às trevas ?) do circo midiático armado em torno das patéticas exéquias de MJ, em Impromptu: Michael Jackson está morto: e daí ? II.

 

Update 20/7/09: novas ruminações, em contraponto ao cinquentenário de Kind of Blue, publicadas em Michael Jackson está morto: e daí ? (iii).

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Augusto Maurer