Autonomia feminina e o Bolsa Família

O Programa Bolsa Familia, para ter sucesso no combate à pobreza, precisa garantir a autonomia feminina e a responsabilidade masculina na reprodução.

O Programa Bolsa Família (PBF) é uma política pública de Transferência direta de Renda com Condicionalidades (TRC), voltada para favorecer as famílias em situação de pobreza e exclusão social. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social – MDS, podem fazer parte do Programa as famílias com renda mensal de até R$ 120,00 (ou R$ 137,00 a partir de maio de 2009) por pessoa devidamente cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Os valores pagos variam de R$20,00 a R$182,00, de acordo com a renda mensal por pessoa da família e o número de crianças e adolescentes até 17 anos. Existem três tipos de benefícios: o Básico, o Variável e o Variável Vinculado ao Adolescente. O Benefício Básico, de R$ 62,00, é pago às famílias consideradas extremamente pobres, aquelas com renda mensal de até R$ 60,00 por pessoa (pago às famílias mesmo que elas não tenham crianças, adolescentes ou jovens). O Benefício Variável, de R$ 20,00, é pago às famílias com renda mensal de até R$ 120,00 por pessoa, desde que tenham crianças e adolescentes de até 15 anos. O Benefício Variável Vinculado ao Adolescente, de R$ 30,00, é pago a todas as famílias que tenham adolescentes de 16 e 17 anos freqüentando a escola.

O PBF define a familia como pilar da politica social e as mulheres como as principais beneficiadas dos recursos repassados pelo governo e o esteio da familia. Os formuladores do Programa consideram que colocar recursos financeiros nas mãos das mulheres tem impactos em duas dimensões:

1) possibilita um maior empoderamento feminino, pois a mulher passa a ter acesso a recursos financeiros regulares, o que aumenta sua capacidade de decisão e alocação em função das prioridades pessoais e coletivas;
2) favorece o conjunto da família, pois a mulher sendo mais altruísta (enquanto o homem é considerado mais egoísta) tende a investir mais no bem-estar dos filhos e parentes: “Receber o benefício significa, para essas mulheres, uma possibilidade de expansão da “maternagem”, entendida como o desempenho do papel de cuidar de crianças, seja na qualidade de mãe, seja na de mãe substituta, que garante o fortalecimento do seu papel central na coesão social do grupo doméstico pelo qual são responsáveis” (Paes-Sousa e Vaitsman, Caderno n. 5, MDS, 2007, p. 21). 

Contudo, estudos realizados no Brasil e na América Latina mostram que eleger, a priori, as mulheres como as principais beneficiárias dos recursos, ao invés de empoderar e garantir a autonomia feminina, podem ter dois efeitos contrários:

1) ao invés de promover a autonomia feminina, fortalece o papel tradicional da mulher como dona de casa e cuidadora do lar, jogando nas costas da família a principal responsabilidade pelo combate à pobreza: “Los programas refuerzan la división social de género en donde las mujeres tienen que ser antes de todo buenas madres. La mujer esta considerada de manera muy tradicional, sirviendo a su familia, guardiana de los valores de virtud moral, altruismo, sacrificio: es un ‘ser para otros’” (Arriagada e Mathivet, Cepal, 2007, p. 30).
2) O foco nas mulheres contribui para deixar de lado a responsabilidade masculina na reprodução, desconsiderando o fato de que em muitas famílias os homens são ausentes, passivos ou simplesmentes omissos. A não responsabilização dos homens aumenta a carga de trabalho e responsabilidade das mulheres, em seu papel tradicional e reduz sua mobilidade social.

Os estudos sobre os Programas de Transferencia de Renda com Condicionalidades ainda não são conclusivos em relação ao papel da autonomia feminina para a superação da pobreza, mas existem algumas indicações que podem ser sumarizadas da seguinte forma:

– Famílias com muitos filhos, especialmente aquelas com filhos pequenos (menores de 15 anos) e/ou com mães adolescentes estão sobre-representadas nas situações de maior intensidade da pobreza, pois elevado número de filhos pequenos (na ausência de equipamentos sociais adequados, como creches) contribui para a redução da renda per capita domiciliar e aumenta a competição por recursos dentro da família, além de requerer maior tempo disponível, especialmente das mulheres, nos afazeres domésticos.
– As desigualdades de gênero e o reforço da tradicional divisão sexual do trabalho estão correlacionados com uma maior incidência da pobreza, pois quando a mulher se retira do mercado de trabalho e reduz sua inserção pública, passando a ser responsável pelo cuidado dos demais membros da família, se torna um “ser para outros” no mundo privado, o que fortalece o chamado “familismo”, que é um limitador da liberdade individual da mulher. A gravidez precoce pode fortalecer os papeis tradicionais de gênero na medida em que dificulta o progresso escolar e a inserção das jovens mães na sociedade.
– A menor responsabilidade e a ausência dos pais na criação dos filhos (fatherlessness) contribuem para agravar as condições de pobreza das famílias, especialmente das monoparentais femininas. A irresponsabilidade masculina é um dos elementos que fortalecem os papeis tradicionais de homens e mulheres na família e as desigualdades de gênero, o que agrava as condições de pobreza.

Estes três pontos se reforçam mutuamente, já que filhos precoces e com espaçamento pequeno entre o nascimento de cada um exige maiores cuidados da mãe e dificultam sua inserção social, ficando a mulher presa aos afazeres domésticos, especialmente com a pouca presença e compromisso dos homens. Adicionalmente, a autonomia feminina é fundamental para o fortalecimento do capital social e as redes de engajamento cívico.

Portanto, se o Programa Bolsa Família quiser realmente reduzir as situações de pobreza terá que garantir a autonomia feminina – não no sentido de fortalecer o papel tradicional da mulher – criando mecanismos de apoio público à família (como creches, restaurantes populares, etc.) e de promoção à educação e à emancipação profissional das mulheres, reduzindo a violência social e doméstica, fortalecendo a convivência comunitária, além de incentivar uma divisão de tarefas e responsabilidades mais igualitárias entre os cônjuges e demais membros da família.

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José Eustáquio Diniz Alves