Direitos sexuais e reprodutivos e a equidade de gênero: a Rio + 20 e a CIPD além de 2014

Suzana Cavenaghi
José Eustáquio Diniz Alves

No dia 10 de dezembro se comemora o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Esta Declaração é um dos principais documentos da história da humanidade e já deu diversos frutos nestes últimos 64 anos, sendo que a concepção do direito sexual e reprodutivo é o seu filho caçula. A equidade de gênero e os direitos sexuais e reprodutivos nasceram e cresceram em termos de presença na agenda internacional na década de 1990 e foram temas debatidos no ciclo de Conferências da ONU. Vinte anos depois, estes temas são mais atuais do que nunca e, com ou sem apoio governamental, voltaram ao centro do debate e devem ser vistos de forma integrada com a defesa do meio ambiente.

A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, de 2012, a Rio + 20, teve como tópicos centrais o desenvolvimento sustentável, a economia verde e inclusiva e a erradicação da pobreza. Inicialmente, os organizadores tentaram deixar totalmente de fora os temas de gênero e dos direitos sexuais e reprodutivos. O Rascunho Zero da proposta de documento final para a Rio+20 falava em “futuro próspero, seguro e sustentável”, reafirmava o compromisso de libertar a humanidade da fome, “por meio da erradicação de todas as formas de pobreza, lutar por sociedades iguais e inclusivas, por estabilidade econômica e crescimento que beneficie a todos” e se comprometia a “acelerar o progresso na realização dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)”.

Porém, o Rascunho Zero restringeu-se à discussão sobre os princípios aprovados na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, e na Cúpula do Milênio (2000), deixando de incorporar os princípios aprovados na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD do Cairo, 1994) e na IV Conferência Mundial das Mulheres (Beijing, 1995). Diante desta omissão questionamos na época se seria possível atingir o desenvolvimento sustentável e erradicar a pobreza sem levar em conta a dinâmica demográfica, as desigualdades sociais e culturais entre homens e mulheres e sem a universalização dos direitos sexuais e reprodutivos.

Nossa posição foi explicitada de maneira clara, pois considerávamos ser impossível resolver os problemas do desenvolvimento e do meio ambiente sem discutir a própria noção de desenvolvimento sustentável, como ele se relaciona com a dinâmica populacional e com as desigualdades de gênero e como são tratadas as questões da sexualidade e da reprodução humana nas diversas sociedades. Ou seja, os direitos humanos e ambientais precisam ser abordados de maneira conjunta, a partir do entendimento que são direitos inalienáveis, universais e indivisíveis.

A Organização das Nações Unidas (ONU), pressionada pelas divergências geopolíticas da Guerra Fria no passado e pelos conflitos políticos e religiosos da atualidade, tem adotado uma postura de dividir os direitos e tratá-los de forma diferenciada para conseguir os consensos internacionais necessários nas suas instâncias de deliberação. Esta estratégia começou na implantação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, mas que teve muita dificuldade para sair do papel. Alguns países alegavam que havia duas espécies de direitos: os civis e políticos que seriam de aplicação imediata; e os econômicos, sociais e culturais que seriam de aplicação progressiva. No contexto do conflito Leste versus Oeste, somente em 10 de dezembro de 1966 a Assembleia Geral da ONU aprovou não um, mas dois pactos − o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Da mesma forma, em vez de realizar uma única Conferência de População, Desenvolvimento e Meio Ambiente, a ONU, no contexto de divergências inconciliáveis na comunidade internacional e dos conflitos Norte versus Sul, adotou a estratégia de tratar os temas de forma separada e realizou a Conferência sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente em Estocolmo (1972), a Conferência sobre Desenvolvimento e População em Bucareste (1974) e a Conferência Mundial de Mulheres na cidade do México (1975). Na sequência da década de 1990 houve as Conferências do Rio-92, Cairo-94 e Beijing-95. Se tal estratégia facilitou a aprovação de resoluções consensuadas nesses diferentes eventos, ela dificultou o tratamento conjunto dos direitos universais e indivisíveis, impossibilitando a busca de soluções holísticas, não hierarquizadas e integradas dos problemas políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais da humanidade, da biodiversidade e do planeta.

Por exemplo, no famoso documento da Rio-92, conhecido como Agenda 21, não estão presentes os conceitos de “relações sociais de gênero”, “empoderamento das mulheres” e “direitos sexuais e reprodutivos”. Em parte, isso deve-se ao fato de estes conceitos terem sido aprovados nas Conferências de 1994 e 1995, embora já estivessem sendo discutidos desde a década de 1980. Mas, mesmo depois das Conferências do Cairo e Beijing, os direitos sexuais e reprodutivos não fizeram parte dos ODMs da Cúpula do Milênio, do ano 2000, e as questões de gênero entraram de forma muito reduzida nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (CORREA; ALVES, 2005). A conjuntura internacional na época do governo Bush não era favorável às discussões de gênero e direitos reprodutivos. Porém, o pior cenário seria que todos estes conceitos ficassem de fora das resoluções da Rio+20, como se as metas para se alcançar o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza pudessem prescindir das metas da equidade de gênero e da universalização dos direitos sexuais e reprodutivos.

O capítulo 24 da Agenda 21 da Rio-92, com o título “Ação mundial pela mulher, com vistas a um desenvolvimento sustentável e equitativo”, enfatizou a participação da mulher no manejo nacional e internacional dos ecossistemas e no controle da degradação ambiental. Porém, foi o Programa de Ação da CIPD do Cairo o primeiro documento intergovernamental das Nações Unidas a adotar o termo gênero. O conceito já era então conhecido e circulava em textos do sistema das Nações Unidas, especialmente documentos de pesquisa. Contudo, no processo preparatório da CIPD (1993-1994), ele seria definitivamente legitimado enquanto linguagem de política pública global, a ser negociada pelos Estados-membros das Nações Unidas. A despeito das indefinições e controvérsias, o conceito pode ser entendido no seguinte sentido:

Gênero se refere ao conjunto de relações, atributos, papéis, crenças e atitudes que definem o que significa ser mulher ou homem na vida social. Na maioria das sociedades as relações de gênero são desiguais e desequilibradas no que se refere ao poder atribuído a mulheres e homens. As relações de gênero, quando desiguais, tendem a aprofundar outras desigualdades sociais e a discriminação de classe, raça, casta,  idade, orientação sexual, etnia, deficiência, língua ou religião, dentre outras.  Os desequilíbrios de gênero se refletem nas leis, políticas e práticas sociais, assim como nas identidades, atitudes e comportamentos das pessoas. Os atributos e papéis relacionados ao gênero não são determinados pelo sexo biológico. Eles são construídos histórica e socialmente e podem ser transformados  (HERA, 1998).

Este conceito representou um avanço, pois, até aquela época, nos textos oficiais, especialmente documentos produzidos no contexto das análises sobre população e desenvolvimento sustentável, as desigualdades entre homens e mulheres, quando apontadas, eram referidas a partir das categorias de status ou de papéis sociais. Porém, existem problemas recorrentes nas análises que são o binarismo de gênero, a forma de se lidar com as chamadas “sexualidades dissidentes” e a falta de clareza para abordar os múltiplos arranjos históricos, culturais e sociais da homoafetividade. Por tudo isso, o conceito de gênero tem sido objeto de controvérsias e ataques por parte de diversas vozes conservadoras.

Em uma análise sobre os 15 anos da CIPD do Cairo para o Brasil, Alves e Correa (2009) mostraram que, apesar das limitações das bases de dados que dificultam um estudo para além do binarismo de gênero, o Brasil tem passado por modificações importantes no sistema sexo-gênero, com redução das desigualdades entre homens e mulheres em muitas áreas e até o surgimento de desigualdades reversas. Na área da saúde, as mulheres brasileiras apresentam menores taxas de mortalidade em todas as idades e, consequentemente, possuem maior esperança de vida ao nascer, sendo que o diferencial em relação aos homens aumentou nas últimas décadas. A taxa de mortalidade por causas externas, devido tanto a acidentes quanto a homicídios, era cinco vezes maior para homens do que para mulheres, em 2008. Por um lado, fatores que explicam estes diferenciais podem ser encontrados nos comportamentos distintos de gênero; por outro, estes diferenciais podem ser possíveis fontes de consequências adversas à equidade de gênero, gerando um desequilíbrio importante na razão de sexos em idades jovens (menos de 35 anos).  Na educação, as brasileiras reverteram o hiato de gênero (gender gap) e ultrapassaram os homens em todos os níveis educacionais, inclusive na graduação de doutorado a partir de 2004.

No mercado de trabalho, as mulheres sofrem com a segregação ocupacional, a discriminação salarial e possuem menores taxas de atividade, embora o hiato venha se reduzindo progressivamente (a taxa de atividade feminina passou de 42% para 52%, entre 1990 e 2008). Na previdência social, as mulheres são maioria entre os beneficiários, assim como nos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Porém, é na representação política e na participação nos espaços de poder, tanto do setor público quanto do privado, que as mulheres apresentam os maiores déficits de gênero. A despeito de o Brasil ter elegido uma mulher para a Presidência da República, o país ocupa a 142ª posição no ranking internacional da representação política na instância das Câmaras de Deputados e está bem distante do processo de paridade de gênero nos espaços de poder. O país tem menos de 10% de mulheres no parlamento, ficando na frente somente do Haiti e Panamá na comparação com países da América Latina.

Os avanços e as lacunas existentes no processo de combate às desigualdades de gênero refletem as contradições do processo de desenvolvimento econômico e ambiental do Brasil, que é heterogêneo e marcado por tendências de exclusão social. O crescimento econômico provocou muitos danos ambientais, como o desmatamento, a perda de biodiversidade, a contaminação dos rios, a falta de saneamento básico em grande parte dos domicílios, a poluição e a falta de mobilidade urbana, o aumento das áreas de moradia de risco, etc. Mas, ao mesmo tempo, o processo de modernização e de transição urbana, juntamente com as mudanças nas relações de gênero, acelerou o fenômeno da transição demográfica. O ritmo de crescimento populacional se desacelerou, diminuindo, em parte, as pressões sobre a exploração dos recursos naturais.

Contra todas as expectativas, as taxas de fecundidade no Brasil caíram de algo pouco acima de 6 filhos por mulher, antes de 1960, para um nível abaixo da reposição na primeira década do século XXI. Mas, como diria Vilmar Faria (1989), esta queda aconteceu de maneira não antecipada e com fortes efeitos perversos, pois a população mais pobre não possui pleno acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva. O resultado é que recai sobre as mulheres o dever de regular a fecundidade e limitar o tamanho da prole para atender à nova lógica das demandas do sistema econômico, mas sem oferecer adequadamente os meios para efetivar a autodeterminação reprodutiva e possibilitar uma vida sexual livre, prazerosa e sem doenças sexualmente transmissíveis. O Programa de Ação da CIPD do Cairo definiu assim a saúde sexual e reprodutiva:

7.2. A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não de mera ausência de doença ou enfermidade, em todos os aspectos relacionados ao sistema reprodutivo, suas funções e processos. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo (p. 30).

A questão da saúde reprodutiva não fez parte da primeira versão dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio,  aprovada na Cúpula do Milênio, em 2000. Porém, no processo de revisão, em 2005, foi estabelecida a meta 5b: “Alcançar, até 2015, o acesso universal à saúde reprodutiva”. Todavia, o que existe é uma precária política de saúde reprodutiva para os pobres, uma vez que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), existem 215 milhões de mulheres no mundo que não possuem acesso aos métodos de regulação da fecundidade, pois vivem em países pobres, onde os governos não são capazes de implementar políticas públicas adequadas nas áreas de saúde, educação, habitação, emprego e muito menos de saúde sexual e reprodutiva.

No Brasil, o governo brasileiro passou a considerar o acesso aos métodos contraceptivos um direito dos casais, pela primeira vez, após a Conferência Mundial de População de Bucareste, de 1974. Mas o Programa de Saúde Materno-Infantil, lançado pelo Ministério da Saúde, em 1977, tinha enfoque limitado e concepção estreita da saúde da mulher em seu escopo materno. Somente com o lançamento do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), lançado em 1983, a questão da saúde da mulher passou a ser pensada de forma integral, não se detendo exclusivamente nas questões de concepção e contracepção. No § 7º, do artigo 226 da Constituição brasileira de 1988, o planejamento familiar foi definido como uma “livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva”. As questões do aborto e da esterilização não fizeram parte do texto constitucional. Na década de 1990 foi aprovada a Lei n. 9.263, de 1996, que regulamenta a prática do planejamento familiar no Brasil e foram criados os primeiros serviços de referência para o atendimento aos casos de abortos previstos no Código Penal de 1940 (gravidez por estupro ou quando apresenta risco de morte para a mulher).

Em 2005, o Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) lançaram a “Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos”, cujos objetivos são: ampliação da oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis no SUS; ampliação do acesso à esterilização cirúrgica voluntária no SUS, aumentando o número de serviços de saúde credenciados para realização de laqueadura tubária e vasectomia, em todos os Estados brasileiros; e introdução de reprodução humana assistida no SUS. Em 2007, o governo federal lançou a “Política Nacional de Planejamento Familiar”, que tem como meta a oferta de métodos contraceptivos de forma gratuita para homens e mulheres em idade reprodutiva e estabelece também que a compra de anticoncepcionais será disponibilizada na rede Farmácia Popular (UNFPA, 2008).

De fato, a demanda por métodos contraceptivos se difundiu progressivamente desde a década de 1960, quando o número médio de filhos por mulher começou a cair no Brasil. A Taxa de Fecundidade Total (TFT) chegou ao nível de reposição (2,1 filhos) em 2005 e continuou diminuindo nos próximos cinco anos, chegando a 1,86 filho por mulher, segundo os dados preliminares do Censo Demográfico de 2010. Contudo, o padrão de fecundidade é muito diferente daquele encontrado na maioria dos países desenvolvidos com a taxa de fecundidade em níveis tão baixos. No Brasil, o padrão é ter filhos cedo, antes dos 25 anos na maioria das vezes, e interromper o processo reprodutivo. Também os diferenciais de fecundidade existentes no país ainda são grandes para alguns seguimentos populacionais mais pobres e menos educados. Por exemplo, segundo Berquó e Cavenaghi (2004), entre as adolescentes e jovens de 15 a 19 anos de idade, os diferenciais de fecundidade variavam em mais de dez vezes, quando controlados por renda e educação. Em geral, as jovens mães têm poucos anos de estudo e baixa renda e a maternidade nestas idades está associada com baixa continuidade escolar e dificuldade de ingresso no mercado de trabalho descente, reproduzindo, na maioria das vezes, o ciclo de pobreza.

A falta de acesso às informações e aos métodos de regulação da fecundidade fez com que o fenômeno da gravidez na adolescência entrasse na pauta da mídia e se tornasse um problema de saúde amplamente discutido na virada do milênio. Porém, os dados preliminares do censo 2010 do IBGE mostram uma queda muito grande da fecundidade nos grupos etários de 15 a 19 e 20 a 24 anos, conforme mostra o Gráfico 1. Isto significa que o processo de rejuvenescimento da estrutura etária da fecundidade foi interrompido nesta década e a distribuição das taxas específicas de fecundidade tenderá a ficar mais envelhecida se esta tendência se confirmar no futuro.

Neste momento, tal processo ainda é devido ao fato de que as mulheres mais jovens estão tendo menos filhos e não porque os estão tendo em idades mais avançadas no período reprodutivo. No entanto, com taxas de fecundidade tão baixas, se as mulheres tiverem oportunidade de realizarem projetos de vida que não envolvam a maternidade no período de formação escolar e de entrada no mercado de trabalho, espera-se que, nos próximos 15 ou 20 anos, ocorra um adiamento dos primeiros nascimentos.

Com certeza ainda falta muito para que a população brasileira, especialmente as camadas mais pobres, possa ter acesso pleno aos serviços adequados de saúde sexual e reprodutiva. A despeito da queda na TFT, ainda é grande o percentual de gravidez não desejada ou não planejada no país. Segundo a PNDS de 2006, 28% dos filhos nascidos nos cinco anos anteriores à pesquisa não foram planejados para aquele momento e 18% foram de fato não desejados. Ou seja, em 46% dos nascimentos considerados houve falha no processo contraceptivo, antecipando um nascimento desejado para mais tarde ou, no pior dos casos, com um nascimento a mais de uma carreira reprodutiva que já estava encerrada. Deve-se chamar a atenção para o fato de que estes indicadores são calculados com número de nascimentos e não número de gravidezes, pois estas são mais difíceis de serem contabilizadas de maneira acurada, pois, em incontáveis casos, uma gravidez não planejada ou indesejada termina em interrupção desta gestação. No caso das mulheres mais pobres, em geral, uma interrupção realizada de maneira insalubre e colocando em risco a vida da mulher.

Assim, o mais básico dos direitos à saúde reprodutiva, que é acesso à contracepção adequada à idade e ciclo de vida ainda, constitui um problema sério no nosso país. Esta afirmação parece incongruente quando se sabe que a porcentagem de uso de contracepção era de 80% em 2006. No entanto, apesar de algumas mudanças nos últimos anos, a contracepção ainda está fortemente associada a métodos femininos e concentrada em poucas opções. A esterilização feminina e a pílula anticoncepcional correspondem a mais de 66% dos métodos empregados e a camisinha masculina é utilizada por 15% dos casais que usam algum método, em geral os mais jovens, restando menos de 18% para todos os demais métodos disponíveis. O alto índice de falha contraceptiva e a inconsistência de uso de métodos não permanentes são responsáveis por grande parte da alta taxa de nascimentos não planejados ou não desejados e do elevado índice de aborto existente no país.

Desta forma, existe no Brasil fecundidade indesejada por excesso, como visto, mas também por falta. Ou seja, há no país uma falta de acesso a métodos e tratamentos conceptivos no sistema público de saúde, que permitiria parte da população exercer seu direito à maternidade. Para as mulheres com maior grau de educação, principalmente aquelas com nível superior e participação ativa no mercado de trabalho, o exercício da maternidade sofre constrangimentos por questões de gênero e por ausência do Estado no apoio aos cuidados e à educação na primeira infância.

Universalizar os serviços de saúde sexual e reprodutiva é essencial. O Brasil já avançou muito na formulação de legislação nesta área. Mas colocá-la em prática é uma tarefa inadiável para o Sistema Único de Saúde (SUS). Porém o SUS passa por uma grande crise e são constantes as notícias na mídia mostrando os casos de abandonos, maus tratos e mortes que poderiam ser evitadas. É evidente que o SUS não está conseguindo efetivar seus princípios de universalidade, equidade e integralidade e não tem funcionado a contento.

No caso da saúde reprodutiva, resolver os problemas de logística para disponibilizar a quantidade adequada dos meios de regulação da fecundidade continua sendo tarefa imprescindível para reduzir a gravidez não desejada e não planejada e libertar a sexualidade dos constrangimentos da reprodução intempestiva. Assim como é um desafio grande instalar serviços adequados para atendimento a tratamentos e métodos conceptivos.

No caso da mortalidade materna, desde 1997, o Conselho Nacional de Saúde aprovou resolução que torna a morte materna um evento de notificação compulsória no Brasil. Por problema técnicos, essa norma só se efetivou, de fato, a partir de 2004, quando foi estabelecido o Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna. Considerando a nossa renda per capita e a extensão dos serviços públicos de saúde, a mortalidade materna no Brasil é alta. A taxa de mortes maternas tem se mantido, nas duas últimas décadas, acima de 50 óbitos por 100 mil nascidos vivos. Só que no Brasil, diferentemente de outros países em desenvolvimento, a mortalidade materna não decorre de problemas de acesso ao pré-natal. A questão central é a má qualidade da atenção no pré-natal e do atendimento obstétrico, uma vez que mais de 60% das mortes maternas ocorrem nos hospitais.

A cobertura do atendimento pré-natal no Brasil é razoavelmente boa, pois mais de 90% dos partos são realizados em hospitais ou acompanhados por pessoal capacitado. Contudo, o programa denominado “Rede Cegonha” tem sido considerado um retrocesso nas políticas com enfoque de gênero, saúde integral da mulher e direitos reprodutivos e sexuais, pois traz de volta a concepção materno-infantil de saúde da mulher, que foi tão critica há cerca de 30 anos. Outra medida adotada pelo Ministério da Saúde e muita criticada é a MP 557, pela forma como ela foi lançada e especialmente o artigo 19, que diz assegurar à gestante e ao nascituro o direito ao pré-natal, parto e puerpério, mas trazendo implicitamente a questão do conceito de direito do nascituro, o que contraria toda a discussão já realizada sobre os direitos reprodutivos.

Por tudo isto, é preciso repensar a relação entre os direitos sexuais e reprodutivos e o processo de desenvolvimento e de sustentabilidade ambiental. A relação entre saúde reprodutiva, pobreza e fecundidade é geralmente inversa em relação ao que considera o senso comum. Um país se mantém no círculo vicioso da armadilha da pobreza quando, do ponto de vista macroeconômico, existem baixos níveis de investimento em educação e saúde pública, altas taxas de mortalidade infantil, elevada violência e insegurança pública, baixa esperança de vida, reduzido tempo de vida dedicado ao trabalho produtivo, pouco investimento em infraestrutura e baixos investimentos em setores produtivos, ciência e tecnologia, etc. Do ponto de vista microeconômico, o menor número de filhos diminui a concorrência familiar pelos recursos escassos, possibilita maiores investimentos em educação e reduz o tempo que os pais (especialmente as mães) dedicam aos afazeres domésticos, permitindo maior inserção no mercado de trabalho e aumento da renda. Desta forma, ter acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva é fundamental para se atingir o tamanho ideal de família, o que ajuda no processo de erradicação da pobreza. O fim da pobreza é um dos aspectos essenciais da sustentabilidade ambiental.

Equidade de gênero e direitos sexuais e reprodutivos são fundamentais para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza, pois sem resolver as inequidades entre os sexos e dentro das famílias é impossível ter uma relação justa com o desenvolvimento e o meio ambiente. Do ponto de vista teórico, já existe consenso sobre o que fazer. Porém, os governos e as conferências internacionais precisam de menos discursos, menos propostas edulcoradas e mais ações práticas.

A Rio+20 não poderia deixar de agendar propostas efetivas para se atingir a equidade de gênero em todas as esferas da nossa sociedade: controle sobre os recursos; acesso à justiça; representação política institucional equilibrada; participação paritária de gênero na tomada de decisões em todos os níveis; e participação na gestão local e das comunidades. Desenvolvimento sustentável significa a construção de um mundo onde as mulheres e os homens possam implantar completamente seus potenciais e repartirem as tarefas do mundo produtivo e reprodutivo, sem discriminações ou violências de gênero. Desenvolvimento sustentável não pode ser sinônimo de consumismo e de continuidade de um modelo de produção que produz inequidades sociais, agride a biodiversidade e contribui para a extinção das espécies. Portanto, trata-se de construir um mundo que respeite as fronteiras planetárias e onde os direitos econômicos, sociais e ambientais para as mulheres e os homens sejam totalmente respeitados, especialmente os direitos sexuais e reprodutivos que são a base da vida.

No documento final da Rio + 20, o tópico “A igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres” foi reafirmado o papel vital das mulheres no processo de desenvolvimento sustentável, levando em consideração a participação plena e igualitária e a implementação dos respectivos compromissos e de acordo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) bem como a Agenda 21, a Plataforma de Ação da Declaração de Pequim e a Declaração do Milênio. O parágrafo 237 afirmou: “Apoiamos medidas que priorizem a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres em todas as esferas de nossas sociedades, incluindo a remoção das barreiras à sua participação plena e igualitária na tomada de decisões e gestão em todos os níveis, e enfatizamos o impacto da definição de metas específicas e implementação de medidas temporárias, conforme apropriado, para aumentar substancialmente o número de mulheres em posições de liderança, com o objectivo de alcançar a paridade de gênero”.

Portanto, a reafirmação da Plataforma de Ação da Conferência de Beijing, de 1995, foi um grande avanço em relação ao Draft Zero de janeiro de 2012, pois a equidade de gênero é fundamental para  o desenvolvimento sustentável e a plena participação social das mulheres. Este tópico foi um avanço também em relação à Cúpula da Terra de 1992. Houve um compromisso de fortalecer a ONU Mulher.

O tópico sobre a “Universalização da saúde reprodutiva” ficou assim colocado no artigo 241: “Estamos empenhados em promover a igualdade de acesso das mulheres e meninas à educação, aos serviços básicos, oportunidades econômicas e serviços de saúde, abordando a saúde da mulher sexual e reprodutiva e assegurar o acesso universal aos métodos modernos de planejamento familiar, que sejam seguros, eficazes, aceitáveis e acessíveis. Neste sentido, reafirmamos nosso compromisso de implementar o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo 1994) e as ações fundamentais para o prosseguimento da execução do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD)”.

Setores do movimento feminista consideraram que a ausência do termo “direitos sexuais e reprodutivos” foi um recuo e uma moeda de troca entre os negociadores do documento e as forças do fundamentalismo religioso e do conservadorismo moral. Porém, houve avanço em relação ao Draft Zero, pois foram reafirmados os princípios do Programa de Ação da CIPD do Cairo de 1994. Também as questões da dinâmica demográfica foram minimamente consideradas no documento. Uma grande lacuna do documento final foi a não aprovação de uma Agência da ONU para o Meio Ambiente, já que em termos de gênero existe a ONU mulheres, mas em termos ambientais existe apenas um programa, o PNUMA.

O tema dos direitos reprodutivos está sendo retomado no processo de discussão do Cairo + 20. Mas a ONU decidiu que não vai fazer uma nova Conferência em 2014. No aniversário de vinte anos do Plano de Ação (PoA) da CIPD, as nações do mundo deverão se reunir para reafirmar esses compromissos já estabelecidos e buscar formas de avançar para além de 2014. Neste sentido o Fundo de População (UNFPA), da ONU, está coordenando um processo de revisão do PoA para definir um conjunto de novas recomendações para garantir a efetivação e o avanço das metas da CIPD. No site do UNFPA Brasil existe um link (CIPD além de 2014) com diversos documentos e informações.

As forças progressistas e preocupadas com a equidade de gênero, com a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e com um conteúdo correto (e não antropocêntrico) para a concepção do desenvolvimento sustentável estão se mobilizando para as seguintes atividades:

a)    As consultas nacionais do processo de revisão da CIPD do Cairo, 1994, que já estão em marcha, sendo que os diversos governos nacionais têm feito pouco para incorporar a sociedade civil neste processo;

b)    A consulta regional da América Lantina e Caribe que esta marcada para acontecer na primeira quinzena de agosto de 2013 em Montevideo, Uruguay.

c)    A Assembléia Geral da ONU que vai deliberar sobre as as metas da CIPD além de 2014, no final do período de 20 anos da Conferência do Cairo;

d)    O processo de revisão dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, a revisão da Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial das Mulheres (Beijing, 1995) e o debate sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), conforme aprovado na Rio + 20.

A luta pela equidade de gênero e pelos direitos sexuais e reprodutivos vai ter batalhas decisivas nos dois próximos anos. A derrota do fundamentalismo de mercado, do fundamentalismo religioso e do conservadorismo moral nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em novembro de 2012 abre uma janela de oportunidade para se prosseguir na agenda internacional dos direitos humanos e ambientais. Mas para garantir avanços em relação à CIPD de 1994 e ir além, será preciso uma mobilização geral para ampliar as conquistas obtidas no passado e para se avançar rumo a um mundo mais justo e livre no século XXI.

Referências

ALVES, J. E. D.; CORREA, S. Igualdade e desigualdade de gênero no Brasil: um panorama preliminar, 15 anos depois do Cairo. In: ABEP. Brasil, 15 anos após a Conferência do Cairo. Campinas: Abep/UNFPA, 2009.
BERQUÓ, E.; CAVENAGHI, S. Mapeamento Sócio-econômico e demográfico dos níveis de fecundidade no Brasil e sua variação na última década. In: XIV ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Anais…  Campinas,: Abep, 2004.
BERQUÓ, E.; GARCIA, S.; LAGO, T. (Coords.). Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher − PNDS 2006. São Paulo: Cebrap, 2008 (Relatório final).
CORREA, S.; ALVES, J. E. D. As metas do desenvolvimento do milênio: grandes limites, oportunidades estreitas? Revista Brasileira de Estudos de População, v. 22, n. 1, p. 177-189, 2005.
FARIA, V. Políticas de governo e regulação da fecundidade: consequências não antecipadas e efeitos perversos. Ciências sociais hoje. São Paulo: Anpocs, 1989.
HERA. Direitos sexuais e reprodutivos e saúde das mulheres: idéias para ação. Nova York: HERA, 1998.
UNFPA. Planejamento familiar no Brasil: 50 anos de história. Brasilia: UNFPA, 2008.
UNFPA. CIPD além de 2014. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/novo/index.php/cipd-alem-de-2014

Observação: Este texto é uma versão um pouco ampliada e atualizada do artigo:
CAVENAGHI, S.; ALVES, J.E.D. A equidade de gênero e os direitos sexuais e reprodutivos: implicações para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza. In: MARTINE, George (Ed.) População e sustentabilidade na era das mudanças ambientais globais: contribuições para uma agenda brasileira. Belo Horizonte: ABEP, 2012.

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José Eustáquio Diniz Alves