Diálogos entre paradigmas By Marcos Bidart de Novaes / Share 0 Tweet Meu caro amigo Rafael fez uma interessantíssima provocação sobre a sua crença na necessidade de um Não-Estado, formado por coletivos organizados de forma não hierárquica. Respondi a ele que partilho desta crença, mas reflito sobre a transição. Pretendo mais adiante me dedicar a escrever sobre aspectos que considero vitais para esta evolução, em grande parte temas econômicos. Isto porque, penso hoje que o grande problema que se apresenta é não a existência de um Estado, mas sim de uma mentalidade que coloca valores financeiros acima de todos os outros, estimulando a competição. Por enquanto continuo pensando sobre como pode se dar a transição para esta sociedade reorganizada. Me ocorre que a força das ideias de Marx e seus seguidores acabou obscurecendo os ideais do socialismo utópico, que era realista e prático. Digo realista, porque a sociedade sem classes de Marx é tão idealista quanto o mundo das ideias de Platão ou o paraíso cristão. Já o cooperativismo é uma forma existente, real. Podemos nos organizar amanhã como cooperados de trabalho ou de consumo, com CNPJ e começar a minar o capitalismo por dentro… Ou não? Deixo aqui então textos mais antigos, de meu mestrado, também inéditos, sobre os ideiais do cooperativismo e como ele foi corrompido. Cooperativas são formas de cooperação contratual entre pessoas. (PINHO, 1966a). São sociedadee de pessoas que se unem em bases democráticas para suprir determinadas necessidades comuns, tanto econômicas quanto sociais. Para a Aliança Cooperativa Internacional, órgão fundado em Londres em 1895, são aquelas sociedades que seguem os princípios originais dos Pioneiros de Rochdale, sendo os quatro principais: (1) adesão livre e voluntária; (2) gestão democrática ou auto-gestão, que garante a cada membro apenas um voto independente do número de suas cotas partes; (3) neutralidade política e religiosa; e (4) educação dos cooperados. (PINHO, 1966a). É uma empresa participativa e sem fins lucrativos, devendo os excedentes ser repartidos entre os associados. Trata-se de uma organização complexa, na qual o cooperado é ao mesmo tempo, dono e usuário da entidade. Enquanto dono tem o direito e o dever de tomar parte dos problemas e sucessos da cooperativa, sugerir ações corretivas e de fortalecimento, propor a criação de novos produtos ou serviços, responder pelos resultados apurados ao final do exercício. Enquanto usuário tem o direito de usufruir os serviços disponibilizados pela cooperativa. O processo de criação de uma cooperativa – sua origem – interfere na sua estrutura e funcionamento, que definirão, por sua vez, as formas de participação social. Esta origem pode ser de dois tipos: vertical ou horizontal. Por cooperativa de origem vertical entende-se aquela criada por entidades externas ao grupo de cooperados mediante uma estratégia previamente definida, gerando uma cooperativa hierarquizada e controlada por um grupo dirigente, implicando em dificuldades posteriores de integração dos cooperados à cooperativa (ALMEIDA; SOUZA, 2003). Isto ocorreu em muitas das cooperativas surgidas de forma forçada em regimes comunistas europeus ou asiáticos (PINHO, 1966b) ou durante a ditadura militar no Brasil (LOPES, 2003). Por cooperativa de origem horizontal entende-se aquela nascida da organização de um grupo de pessoas estimuladas por necessidades comuns percebidas e na qual a interferência de agentes externos se limita ao apoio e a orientação. São cooperativas geridas num ambiente mais democrático e apesar do período de gestação ser maior, têm mais facilidade de envolver os cooperados nos processos de participação. As cooperativas desempenham hoje funções estratégicas chave para se atingir uma “orquestração” ideal de interesses, equilibrando individualismo e perspectiva comunitária. Permitem tanto no campo quanto na periferia das grandes cidades que os atores sociais se associem para intervir e mudar uma dada realidade. (MARTINEZ, 2002). O fortalecimento de cenários societários em que associativismo e cooperativismo acontecem com maior intensidade parece estar diretamente associado à redução de desigualdades sociais e políticas (KERTENETSKY, 2003). Desde seus primórdios o ideal cooperativista foi o de organizar seres humanos em um meio social e econômico harmonioso. Isto ajudaria a suplantar o antagonismo individual e substituí-lo por uma nova ordem baseada em colaboração e associação. Para históricos sucintos do movimento cooperativista pode-se ler, por exemplo, o trabalho de Domingues (2004) e para obter um conhecimento mais aprofundado pode-se lançar mão do trabalho de Buber (2005), O Socialismo Utópico, que trata do tema do ponto de vista histórico-filosófico ou, ainda, das várias obras de Pinho (1966ab), que proporcionam visões históricas e sociopolíticas. Nas três primeiras décadas do Século XIX surge uma série de obras de três autores “a quem Engels denomina os fundadores do socialismo” (BUBER, 2005, p. 35): Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Os dois primeiros ligados profundamente a ideais cristãos, e imaginaram o cooperativismo como uma forma de reformar a sociedade e a própria religião. A obra principal de Saint-Simon denomina-se New Christianity. Já Fourier defendia a propriedade comunitária. Foi o primeiro a formular uma federação de comunidades rurais e a idealizar uma forma de consumo e produção dentro das comunidades de trabalho. Considerava que o homem construía a sociedade de maneira egoísta, prevendo sempre o lucro. Com isso, o homem não desenvolveria sua própria personalidade, nem sua própria capacidade. Owen construiu suas idéias não em cima de teorias, mas em atividades práticas, como a do cotonifício de New Lanark, no seio do qual criou instituições sociais exemplares. Central para as idéias de Owen e importante para ser resgatado mais tarde do ponto de vista estratégico, é que ele entendeu que o vital não era a propriedade comum ou igualdade de consumo, mas uma igualdade de direitos e facilidades (BUBER, 2005). Estes alicerces iniciais do chamado Socialismo Utópico foram usados por outros pensadores para dar continuidade a propostas de transformação radical da sociedade. Nem sempre com o nome de cooperativismo, mas inspirado nos mesmos ideais, Pierre-Joseph Proudhon propõe a “solidariedade de todos os trabalhadores na mesma oficina” (BUBER, 2005, p. 50). Mais tarde os anarquistas Kropotkin e Landauer desenvolveram a idéia de uma “aldeia socialista”. Este último funde as idéias de Proudhon e Kropotkin e imagina uma sociedade de trocas igualitárias, que se apóia sobre a comuna, a comuna rural, que reúne a agricultura e a indústria. Durante um largo período o cooperativismo foi entendido como estratégia de transformação social. Esta concepção de cooperativas como transformadoras da realidade teve continuidade com movimentos de caráter confessional, católicos, protestantes ou judaicos. (PINHO, 1966b) Segundo Serayev (1981), os clássicos do marxismo logo passaram a afirmar que sem estabelecer a ditadura do proletariado nenhum sistema cooperativo poderia servir de instrumento para transformar a sociedade. Ainda assim valorizavam o papel social do movimento cooperativo. Marx e Engels orientavam politicamente o movimento cooperativo como organização de trabalhadores dentro do marco regulatório do sistema capitalista de produção, indicando seu máximo aproveitamento na luta contra a burguesia. A diferença para os autores anteriores é que Marx e Engels rejeitaram idéias de transformação pacífica do capitalismo em socialismo. Determinaram que “antes da conquista do poder estatal pelo proletariado o sistema cooperativo jamais pode transformar a sociedade capitalista” (SERAYEV, 1981, p. 43). Nos trabalhos escritos depois da Revolução de Outubro, Lênin (1979) terminou de elaborar a teoria das cooperativas e das vias para usá-las em diferentes formações socioeconômicas. Destacava a importância que estas tinham em uma lenta e gradual transformação da propriedade rural, já que considerava impossível por algum procedimento rápido transformar milhões de pequenas fazendas camponesas em fazendas estatais. Isto deveria ser feito exatamente através de um lento procedimento de aglomeração em cooperativas de convencimento das vantagens de cultivo em comum. Entendia assim as cooperativas como forma de edificação do socialismo (SERAYEV, 1981, p. 69), mas reconhecia que era necessário “conceder à cooperação uma série de privilégios de ordem econômica, financeira e bancária” (LENIN, 1979). Nos outros países socialistas da época pós-segunda guerra mundial, como China, Polônia, Tchecoeslováquia, República Democrática da Alemanha, Hungria, Romênia, Bulgária, Albânia, Mongólia, República Popular da Coréia e República Popular do Vietnã, as cooperativas também foram consideras como importante estratégia na consolidação do socialismo. Apenas para citar o exemplo chinês, as cooperativas foram consideradas o principal instrumento para o avanço do socialismo, “por permitirem acomodar a milenar formação individualista dos camponeses ao ambiente do socialismo” (PINHO, 1966b, p. 126). Quando os 28 pobres tecelões de Rochdale se uniram e durante um ano economizaram para abrir seu próprio armazém, deram um exemplo simples de ganho de escala e de sinergia que seria repetido depois por inúmeras cooperativas. Desde o começo também, os estatutos dos Pioneiros de Rochdale propunham idéias que podem ser traduzidas em termos modernos como integração vertical ou horizontal, bem como alianças estratégicas com outras cooperativas. O sucesso destas idéias iniciais passou a ser seguido em diversos países (PINHO, 1966b). Cooperativas de crédito surgem na Alemanha e norte da Itália, similares a pequenos bancos para financiamento da classe média urbana. Estas já se mostravam menos preocupadas com os ideais de transformação da sociedade e sim com aspectos mais pragmáticos, como a abertura de novos negócios, a melhoria da qualidade de vida do homem do campo, ou a solução de problemas do crédito agrícola. Hoje é indiscutível a importância do movimento cooperativista como forma de promoção da justiça social e distribuição da riqueza no mundo capitalista. Domingues (2004) traz em sua pesquisa dados de grande relevância para a compreensão do fenômeno no mundo. Na Polônia, mais de 75% das moradias existentes foram construídas por cooperativas. Na Suécia, a cadeia de cooperativas “OK” possui a maior refinaria de petróleo do país e é responsável pela distribuição de 20% do total de combustíveis e produtos petrolíferos e as cooperativas são responsáveis por 99% da produção de laticínios. Na Malásia, o maior sistema de seguros é do movimento cooperativista. Na Índia as cooperativas leiteiras têm usinas de transformação de leite, que estão entre as maiores e mais modernas do mundo e, além disso, cerca da metade da produção de açúcar derivam delas. A Islândia, pequena ilha do mar do Norte, é comumente conhecida como “Islândia Cooperativista”, devido ao elevado nível de desenvolvimento das cooperativas. O segundo lugar no sistema bancário mundial de crédito é ocupado pelas Caixas Cooperativistas Agrícolas Francesas. As cooperativas de Mondragón, Espanha, são grandes produtoras de refrigeradores e eletrodomésticos e estão entre as 10 maiores empresas do país. As cooperativas polivalentes japonesas, responsáveis por 95% da colheita do arroz, agregam quase que a totalidade dos agricultores, e ocupam um lugar de destaque no desenvolvimento econômico das regiões rurais. No mesmo país, quase todos os pescadores são cooperados. As cooperativas de eletrificação rural foram responsáveis pela quase totalidade da energia elétrica implantada no setor rural dos Estados Unidos. Se na Europa o associativismo em forma de cooperativas surge como reação proletária às condições de extrema exploração, o cooperativismo brasileiro tem seu início em condições opostas. O primeiro era essencialmente urbano em sua origem e o brasileiro promovido pelas elites agrárias. Enquanto que na Europa surge como movimento popular, no Brasil é imposto de cima para baixo, como política de controle social. (MISI, 2000). Hoje o cooperativismo brasileiro é totalmente alinhado com a ideologia neoliberal competitiva. “Costuma ser apresentado como o meio adequado para a classe de baixa renda se inserir no mercado, competindo com os grandes conglomerados”.(MISI, 2000, p. 76). O cooperativismo tem mesmo assim alto potencial socioeducativo (MISI, 2000). Segundo Pinho (2000), ajuda na formação de uma consciência de cidadania crítica dos cooperados e reafirma a responsabilidade individual e coletiva pelo sucesso de empreendimentos. As cooperativas são também apontadas como forma de organização especialmente favorável á superação das desigualdades de gênero, pela tradição cooperativista de oposição a discriminações. Podemos como conclusão afirmar que os ideias cooperaritivistas são solução e possibilidade de transição. Sua prática é no entando problemática e deve ser implementada com atenção. Como formas de organização que promovem a reflexão crítica sobre propriedade e valores ecomomicos e sociais, são importantíssimas. Podem no entanto servir a uma maior exploração das pessoas pelas pessoas, como lembra o russo Serayev: As cooperativas são formas de organização social econômica de operários, camponeses, artesãos e outras faixas da sociedade capitalista cuja situação econômica é instável ou piora com o desenvolvimento do capitalismo. Estes se agrupam para ações conjuntas, com o objetivo de defender seus interesses econômicos. Essa cooperação atua, no entanto, como força produtiva auxiliar que assegura uma produtividade mais elevada do trabalho explorada pelo capital (SERAYEV, 1981).