A negação do horror e a afirmação da vida nas pinturas de Francis Bacon

 Francis Bacon é um artista cuja obra sempre esteve vinculada aos aspectos medonhos da existência. Uma pintura resultante de agonias diversas que, sob o julgo dos olhares anêmicos e covardes, torna-se uma mera alusão ao horror e a miserabilidade de um sujeito decadente. É assim que vulgarmente é tratada a obra de Francis Bacon. Não há, pois, no lugar do horror algo de vitalista? Não seriam obras de forças e sensações que estariam, de maneira muito singular, vinculadas por um amor radical à vida?

A pintura é o modo pelo qual é possível tornar visíveis as forças invisíveis. Desse modo é possível perceber que é primeiro no domínio das forças e, conseqüentemente, na produção de sensações, que a pintura age. A convulsão pictórica do trabalho de Francis Bacon produz um estranhamento e, no entendimento de alguns, um horror; um horror que não é o horror de uma pintura em si, mas um horror que se dá a partir de zonas de indiscernibilidade. A deformação dos rostos, por exemplo, apresentado em um tríptico, é o modo como o pintor captura as forças presentes em estados de natureza diversos cuja identidade é inexistente – e isso não remete necessariamente ao horror, ao grotesco. As forças, ali, agem sobre um corpo produzindo sensação. O horror pode representar, para alguns, um vivido – como no caso do espanto causado pela primeira exposição individual de Bacon, em 1945, num período fatalmente marcado pelo horror da guerra – nesses casos, talvez, caberia uma deformação do próprio olhar do sujeito, uma análise de possibilidades outras e uma experimentação da sensação a partir de outros vividos, ou ainda melhor, da experimentação das forças constitutivas da pintura enquanto ato artístico ali exposto. Em todo caso, como já dito, o horror é uma representação, uma alusão a vividos que são sempre particulares. O horror aparente escapa ao ato da pintura. Mais do que o horror, Bacon pintou a deformação, o grito. Os elementos visíveis do fluxo de forças detectadas pelo artista não são os que se lêem nas interpretações mais comuns. A questão não se detém ao horror, ao grotesco e as demais adjetivações similares vinculados à obra de Bacon. As questões a serem investigadas – e antes, propostas – são: O que se passa nas zonas de indiscernibilidade que antecedem e, depois, compõem o ato da pintura? Que forças atuam para constituição das sensações?
 
Um caminho possível para uma investigação menos fantasiosa está na idéia do não desenvolvimento de aspectos figurativos e narrativos. As figuras de Bacon estão, quase sempre, voltadas para si em espaços marcados por traços, linhas assignificantes que isolam a figura interrompendo a narrativa e sua conseqüente representação; é o figural que encontra-se sempre no centro da questão, não o limiar representativo – a figura é ato. A figura isolada, seja por uma forma de paralelepípedo ou círculo, define sua área de atuação, define um fato, ali ela acontece.
 
Bacon escapa do figurativo como da representação, o que possibilita a autonomia da figura – ela (a figura) não tem história, não representa, é puramente figural. Se há a negação dos aspectos citados, o entendimento da obra não pode se dá a partir de análises que tenham o horror como meio interpretativo, posto que é o horror representativo e avesso ao puramente figural que propõe o artista. No horror não há nada além do próprio horror que ele mesmo narra e representa, na deformação, no entanto, há forças, há fluxo de intensidades que detectadas pelo artista propiciam sensações. As adjetivações representativas não dizem senão o avesso do que pode, em ato, as deformações das pinturas de Bacon, que, por sua vez, não fazem senão afirmar a vida através da força ativa da sensibilidade do artista. 
 
A afirmação da vida, na pintura de Bacon, se manifesta de diferentes maneiras, o que, no entanto, é recorrente em seus trabalhos é o aspecto figural da deformação, cujo intuito parece ser o questionamento dos limites do corpo. Assim, pois, a pergunta espinosiana “O que pode um corpo?” ganha, na pintura baconiana, um novo vigor.
 
A questão da deformação é, normalmente, trabalhada sob aspectos forçosos, e de natureza negativa, por aqueles que costumam analisar a pintura de Francis Bacon. No entanto, são assim analisadas por Deleuze:
 
 As deformações de Bacon são raramente coagidas ou forçadas, não são torturas, apesar do que se diz: ao contrário, são as posturas mais naturais de um corpo que se reagrupa em função da força simples que se exerce sobre ele, vontade de dormir, de vomitar, de se virar, de ficar sentado o maior tempo possível etc. (2007, pag.65)
 
Ora, não há se não uma fuga estratégica criada por Bacon, através do ato da deformação, que o possibilita uma ruptura radical com os aspectos representativos da pintura. É através da diferenciação que Bacon consegue impulsionar o que há de humano em sua pintura.  A carne é o seu objeto vital, o plano de consistência de uma obra voltada aos instintos e, sobretudo, às escoriações da vida.  
 
 
BIBLIOGRAFIA:
DELEUZE, G. Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2007.
About the author

Laio Bispo