OPS! entrevista o vinhateiro Marco Danielle.

Conheci os vinhos de Marco Danielle num jantar-degustação em São Paulo. Degustados às cegas e acompanhados de dois vinhos biodinâmicos da conceituada Maison M. Chapoutier, os vinhos Tormentas Premium 2004 e Minimus Anima 2005 saíram-se muito bem. Em verdade, foram surpreendentes.Esses vinhos e seu criador têm causado frisson no mundo dos vinhos, arrastando uma boa quantidade de críticas favoráveis, como a de Steven Spurrier, editor-chefe da Revista Decanter – uma das mais conceitudadas do mundo.

Na apresentação de seu projeto, o fotógrafo de sucesso Marco Danielle nos convida a "conhecer o primeiro vinho de garagem ou vinho de autor brasileiro elaborado sob um método 100% natural, abrindo um novo capítulo na história da vitivinicultura brasileira"

Para conhecer melhor seu projeto, como se deu a migração da fotografia para a enologia e algumas de suas impressões a respeito dos vinhos em geral, o OPS! procurou Marco Danielle que gentilmente concedeu essa exclusiva entrevista. Boa leitura e bons goles!

Marco Danielle, o fótografo-vinhateiro.

OPS!: Como começou seu interesse pelos vinhos?

Viajei pela primeira vez para a Itália aos 22 anos, e durante aqueles dois meses que passei na Europa vi que o vinho era parte importante da vida das pessoas. As refeições, no Vêneto, tinham muito mais cor, alegria, e sabor. Há que se considerar também o lado atávico, tenho dupla nacionalidade e nasci em Caxias do Sul, epicentro da imigração italiana no Rio Grande do Sul e sede da Festa Nacional da Uva; uva e vinho portanto correm nas veias desta cidade. Desde muito cedo, tanto aqui como na Itália ou na França, as crianças acostumam-se ao gosto do vinho, que na mais tenra idade lhes é servido com água e açúcar em substituição ao refrigerante. Faço isso para minha filha Fulvia, de oito anos. Feliz substituição, eu creio, deveria ser adotada por todas as famílias de bem! (risos)

Até o início dos anos 90, ainda na faculdade, confesso que me contentava com o consumo eventual dos rosês leves, de uvas americanas, que meus pais compravam diretamente dos camponeses. Então veio o Liebfraumilch da garrafa azul, e foi uma evolução! Sou, portanto, fruto da geração Liebfraumilch! Sorvia aquilo como um néctar, com a maior reverência e contemplação, e até hoje, quando me encontro frente a alguns vinhos raros, emblemáticos, ou caros, não consigo reencontrar a mesma ilusão experimentada naquelas primeiras garrafas azuis.

Anos depois, quando morava em Paris, durante um agradável jantar na casa do Jean-François Arrigoni, um amigo pintor, veio à mesa um vinho tinto sem rótulo, com bastante depósito na garrafa, que me encantou. Perguntei do que se tratava, e ele informou entusiasmado que era o vinho que um amigo fazia em casa. Um "vin de garage". Foi então que percebi que aquilo nada tinha em comum com os vinhos comerciais que eu tomava no dia a dia em Paris, de preços moderados, mas todos parecidos e sem maior personalidade. Inferi que para sentir maior emoção com um vinho, seria preciso pagar mais caro. Quando voltei para o Brasil, no início de 2001, vi que este mais caro era ainda mais caro aqui, pois incidiam impostos e toda uma exploração adicional, e isso fugia à minha realidade financeira. Na época, nossos novos vinhedos de ponta estavam ainda começando, e os vinhos que estavam no mercado eram em geral sofríveis. Foi quando decidi voltar para a França a passeio, com a família. Visitei o Vale do Loire, e trouxe material didático para elaborar meu primeiro vinho, feito na safra 2002 à moda clássica francesa, valorizando delicadeza e elegância. O da safra 2004 recebeu 90 pontos e foi elogiado por Steven Spurrier, e o resto da história todos conhecem mais ou menos, creio.

OPS!: O senhor se define como um artista-vinhateiro. O que significa?

Infelizmente parei temporariamente de usar esta expressão, que me soa muito singela. Contudo, não soou de mesma forma para muitos. Enfrentei críticas e incredulidade, sendo seguidamente chamado de pretensioso. Até hoje não sei ao certo qual a pretensão ou vantagem que existe no status de ser artista, condição que inclusive sempre me causou algum constrangimento, haja vista a penúria e a decadência da arte – que parece há muito ter perdido espaço e importância para a tecnologia. O artista é um ser marginal na nossa sociedade de consumo, onde imperam o pragmatismo e as leis de mercado. A Nouvelle Vague do cinema deu espaço ao fast food Matrix, que uma horda de fãs da jovem geração considera filosofia de primeira. Quanto à arte, já nem sabemos ao certo o que seja, nem que destino terá na sociedade do futuro. O sentido de artista-vinhateiro é, em primeiro lugar, marcar bem a idéia de que trata-se aqui de um vinho feito à mão, e não por máquinas. Arte tem que ter a mão do autor; não pode ser feita em série, por máquinas. Segundo e mais importante: dediquei vinte anos de carreira à fotografia artística e publicitária. Aos vinte e dois anos já fazia exposições e tinha patrocínio da Kodak. Anos mais tarde registrei uma editora de fotografia artística em Paris, através da qual publiquei reproduções da minha coleção de imagens, que eram impressas na Itália. Tive reproduções das minhas fotos em preto e branco vendidas em Paris, ao lado da obra dos mestres da fotografia que foram meus ídolos, e que ainda na infância me despertaram o interesse pela arte fotográfica. Quando voltei para o Brasil, um pequeno editor francês comprou os direitos de publicação das fotos mais vendidas da minha coleção, que até hoje são reeditadas e comercializadas em Paris (Éditions Promophot). Não sei até que ponto esta experiência me confere o status de artista, mas enfim, faço a criação completa dos meus rótulos, desde os efeitos gráficos no Macintosh, até o fechamento dos arquivos para a impressão. Sou formado em Publicidade, e vivi uma vida em função da imagem e do texto. Acredito fortemente que esta vocação para a criação e para o senso estético se reflitam, de alguma forma, nos meus vinhos. Acredito que um grande vinho é, sem dúvida alguma, uma manifestação do estético. O bom connaisseur de vinhos é, para mim, um esteta.

OPS!: O que diferencia um vinho de autor, como os Tormentas, dos vinhos produzidos em grande escala?

Talvez o mesmo que diferencia a alta costura do prêt-à-porter, ou a alta gastronomia do fast food. São coisas distintas, mas ambas têm seu valor e sua contribuição às diferentes necessidades do homem. O homem precisa alimentar o corpo tanto quanto qualquer animal, mas é a necessidade de alimentar o espírito que o faz diferente. Mais evolui e se refina; mais o alimento deixa de representar uma mera necessidade vital, passando a adentrar o reino do simbólico. Quando se compra um vinho de exceção não se compra apenas um vinho. Se compra uma idéia e um conceito; se compra um sonho. Graças à produção de vinhos em escala industrial, um maior número de pessoas têm acesso a algo que num passado não muito distante representou uma iguaria reservada a uns poucos privilegiados. Hoje encontram-se no mercado vinhos muito agradáveis na faixa de R$ 13,00, o que ainda é caro para a maioria das famílias brasileiras, se imaginarmos um consumo diário. Já quando entramos no domínio dos vinhos de autor, ou da alta gastronomia, falamos de coisas feitas à mão, como no caso do Tormentas e Minimus Anima, que estão entre os raros vinhos do mundo feitos por desgranagem manual das uvas, além de uma série de outros controles manuais que já começam pela seleção dos cachos, ainda no vinhedo. Praticamente não são usadas máquinas para a elaboração do Tormentas e do Minimus Anima, enquanto alguns países que exportam vinhos em grandes quantidades usam máquinas inclusive para a colheita da uva. São verdadeiras usinas de processamento de uvas. Claro que o apreciador iniciante pode ter certa dificuldade para entender as diferenças entre uma e outra proposta, afinal tudo é vinho. Mas os bons vinhos de autor, para fazer jus ao título, além do enorme cuidado na condução dos melhores cachos de uvas até o copo, devem esgotar as possibilidades na busca de resultados de maior expressão. Isso se consegue antes de tudo no vinhedo, reduzindo quantidades em prol da qualidade das frutas e escolhendo as melhores parcelas, além de certos cuidados ao longo da vinificação. Tudo deve visar máxima perfeição. Não apenas as frutas assim obtidas são muito mais caras, mas o próprio processo de elaboração. Como recompensa, teremos vinhos de maior personalidade e expressão, distintos das produções em escala, e portanto muito mais raros. O apreciador experimentado saberá distingüir nitidamente estas qualidades e fruí-las, e o valor destes vinhos fugirá sempre ao valor de mercado dos vinhos em geral, mesmo os melhores, feitos em maior quantidade. Porque quando falamos de vinhos de exceção ou de alta gastronomia, não falamos simplesmente de alimentos, falamos de sonhos do homem, em sua eterna sede de descobertas e busca de sensações. Um vinho simples e uma comida simples alimentam o corpo e têm seu valor. Mas um vinho de exceção, bem como um prato assinado por um artista, alimentam mais que as necessidades fisiológicas. Alimentam a alma e a sede estética. E talvez por isso, como tudo que faz parte do mundo dos sonhos, não devam ser consumidos na corrida diária, sem um mínimo de ritual e contemplação. Mas qual o preço de um sonho?

OPS!: O documentário Mondovino de Jonathan Nossiter critica impiedosamente os flying-winemakers, como Michel Rolland; alertando quanto à excessiva padronização. Qual a sua opinião a respeito?

Não concordo que exista uma crítica "impiedosa" e direta, propriamente. Existe, sim, uma figura em pleno sucesso profissional, rodando em uma Mercedes e dando risadas frenéticas o tempo todo, e isso talvez incomode a maioria dos mortais que vivem direta ou indiretamente do vinho e que não têm uma Mercedes e muito menos um motorista, nem tampouco motivo para dar gargalhadas histéricas. O resto fica por conta da imaginação fértil dos gurus do nosso meio. Nossiter filmou de cima do muro, não interveio em nada, embora muitos o acusem de "manipular" a edição. Como se fosse possível obrigar as pessoas a falar o que queremos, em um documentário. Quem faz o filme interessante, a meu ver, são exclusivamente seus personagens, que independem do Nossiter. A grande sacada do filme foi apontar uma câmara para gente célebre e gravar seus depoimentos, fórmula que dá sempre bons resultados. O grande erro da comunidade enófila foi superestimar a genialidade do autor por tal feito, coroando-o como um connaisseur em vinhos – o que nada tem a ver com saber usar uma câmara digital. Isso desencadeou uma série de distorções, e terminou por jogar os holofotes da mídia sobre mais um ditador do gosto. O grande mérito de Mondovino, por sinal, foi justo este: o silêncio do Nossiter. Tive consciência disso recentemente, quando o ouvi afirmar na imprensa que vinhos chilenos e argentinos não são vinho. Às vezes há que se separar a obra de seu criador. Mondovino tem vida própria e independe das confusas idéias de Nossiter. É um interessante documentário.

Quanto à padronização dos vinhos, bem, graças a ela passou-se a tomar vinho no mundo inteiro, e não apenas nas regiões onde o vinho já era uma tradição milenar. E é através dela que o neófito ingressa no mundo do vinho. Se tiver um gosto refinado, contudo, logo vai evoluir e enjoar dos vinhos comerciais populares, maquiados com madeira, xaroposos, adocicados e alcoólicos, passando a explorar os vinhos de terroir, mais austeros e mais telúricos, menos temperados com madeira e mais complexos em notas de terra e fruta. Os vinhos adocicados e amáveis, com taninos e acidez imperceptíveis, são úteis para o consumidor eventual, que pouco ou nada entende de vinhos. Mas são cansativos para o apreciador refinado, que harmoniza vinhos e cozinha, e cultiva um consumo mais freqüente. Este consumidor busca um vinho para o uso diário, mais leve, menos alcoólico e mais complexo, e termina compreendendo a velha e sábia cultura européia, que não por acaso produz vinhos assim há séculos. Devemos lembrar que há pouco tempo o vinho era uma bebida dura, rústica, seca e difícil, relegada aos poucos países que a tinham por tradição ancestral, como França e Itália. Fora destas culturas e destes países, o vinho parecia algo tão repelente à maioria da população quanto o peixe cru dos japoneses, ou o mate amargo dos gaúchos. Some-se a isto o fato de que o vinho foi, durante séculos, um luxo reservado às elites e à aristocracia européia, e é fácil entender que as colônias do Novo Mundo tenham bem pouca familiaridade com o néctar de Baco. Considerando-se a cultura canavieira fortemente implantada em boa parte das colônias do Novo Mundo tropical, perpetuando o hábito da adição de açúcar a quase tudo, é possível entender porque um país como o Brasil tem um baixíssimo consumo de vinho, de cerca de dois litros per capita. É justo a padronização e a transformação do perfil dos vinhos em bebidas macias e adocicadas que está mudando este quadro, abrindo o mercado para que regiões como o nordeste brasileiro, por exemplo, passem a consumir algum vinho. Portanto, a padronização tem mais adicionado que subtraído – grosso modo.

OPS!: O que há de especial no terroir de Encruzilhada do Sul?

Trata-se do município mais alto da Serra do Sudeste, na metade sul do Rio Grande do Sul, com cerca de 450 metros acima do nível do mar em seus picos – o que ajuda na amplitude térmica -, dentro de uma das regiões mais áridas do estado, com menor índice pluviométrico – duas condições fundamentais para uma viticultura de qualidade. A pouco mais de 300 quilômetros a sudoeste do Vale dos Vinhedos, temos em Encruzilhada um mundo à parte, onde é possível obter desde maturações extremas das uvas até a passerização total, nos melhores anos. Isso é impensável no Vale dos Vinhedos ou na Serra Gaúcha inteira. Como resultado, o Brasil pode produzir hoje, em Encruzilhada do Sul, vinhos maduros e concentrados ao perfil do Chile, Argentina, e Uruguai, ano após ano, guardando, contudo, uma personalidade própria. Podemos citar o exemplo da variedade Tannat, que adaptou-se muito bem em Encruzilhada e produz, safra após safra, vinhos robustos e concentrados beirando os 16 graus de álcool natural (se assim desejarmos), algo inédito na história da nossa vitivinicultura. Posso afirmar sem receio que poderemos, em Encruzilhada do Sul, atingir brevemente a expressão qualitativa da Califórnia em alta vinicultura, incluindo o Brasil no seleto grupo dos países vinhateiros de qualidade internacional.

Há que se lembrar, contudo, que não basta estar na região ideal para fazer grandes vinhos. Um vinho da Serra Gaúcha cujo vinhedo foi conduzido com capricho e controle de produtividade pode produzir vinhos superiores aos de um vinhedo de Encruzilhada cuja preocupação é produzir quantidade. Mas não tenho dúvida que os grandes premiums brasileiros nascerão em Encruzilhada do Sul e fronteira, quando lá se encontrarem vinhateiros de brio e de talento. Pois, como cita Émile Peynaud, "não basta possuir um Stradivarius para fazer boa música"

OPS!: Tem-se dito que a variedade Merlot seria a mais adequada à produção de tintos no Brasil. Uma verdade ou um preconceito?

Uma verdade comprovada ano após ano pela prática, válida em particular para a Serra Gaúcha. Aparentemente ocorre que a variedade Merlot adaptou-se melhor aos solos mais úmidos. Creio que há que se considerar também o perfil de taninos mais suave, gerando vinhos naturalmente mais redondos. O perfil de taninos mais duro das viníferas tintas em geral e da Cabernet Sauvignon em particular, sob clima impróprio e maturações incompletas reflete-se em verdor herbáceo e dureza dos vinhos, principalmente em vinhedos mal conduzidos. Raramente atingindo uma maturação satisfatória, esta variedade tende a perder concentração e diluir-se com as chuvas. O mesmo não ocorre com a Merlot da Serra Gaúcha, que tem apresentado vinhos de um violáceo vibrante, ricos, frutados, e muito mais equilibrados. Na metade-sul do Rio Grande do Sul e região da fronteira, o clima mais seco, com estiagens freqüentes, tem proporcionado uma Cabernet-Sauvignon de qualidade superior.

OPS!: O senhor tem utilizado as técnicas do ripasso e da passerização. O Vêneto é uma fonte de inspiração?

Sou de origem vêneta, mas acho impróprio, além de bem pouco original, citar esta circunstancia para alargar minha história vinhateira. Ninguém na minha família produz ou trabalha com vinho, incluindo os parentes mais próximos, e o que me levou a fazer vinho foi o interesse pessoal e a relativa proximidade do melhor lugar brasileiro para uma viticultura de qualidade. Meu bisavô italiano e alguns de seus quatorze filhos produziam vinho com a mesma empolgação que produziam milho, mas isso era a rotina de 99% das famílias de imigrantes na época. Confesso que a idéia de repassar determinados vinhos pelas cascas mais ricas recém prensadas de outros veio por mera intuição e curiosidade. Muito depois fiquei sabendo do Valpolicella Ripasso, que passa pelas cascas riquíssimas do Amarone passerizado e recém prensado, extraindo aromas, estrutura, e ganhando complexidade. Temos que pensar que o vinho existe há sete mil anos, e muito do que se fez ao longo destes séculos foi empírico e intuitivo. Nenhuma idéia é totalmente nova em vinicultura.

OPS!: O senhor afirma que é possível elevar a produção de vinhos brasileiros ao estado de arte. Não seria um exagero, já que a qualidade média da produção nacional ainda é muito baixa?

Penso que onde quer que se possa obter uvas de boa qualidade, da forma mais espontânea possível, sem que para tanto seja necessário aplicar exagerados tratamentos químicos ao vinhedo (pesticidas, fungicidas, herbicidas, etc.) um vinho poderá elevar-se ao estado da arte. Mas esta é uma metáfora para expressar a minha paixão pelo vinho, e a minha contemplação frente à grandiosidade da natureza. Quanto mais natural um vinho, e mais orgânico um vinhedo, tanto mais próximos estaremos do ideal de harmonia e perfeição vislumbrados pela arte. Vejo com alívio e satisfação que a vitivinicultura orgânica está virando uma obsessão dos grandes vinhateiros do mundo.

Como eu disse, creio que em Encruzilhada poderemos elaborar grandes vinhos, de qualidade internacional, assim que vinhateiros de talento, realmente apaixonados, decidirem investir em excelência total (cujo retorno comercial é sempre mais lento e incerto). Infelizmente os empresários do setor são em geral imediatistas e pragmáticos, preocupando-se muito mais com cifras, quantidades, e resultados financeiros do que com o projeto de grandes vinhos. Portanto sempre que pensamos em qualidade e requinte, vêm poucos vinhos brasileiros à mente, de fato.

Ocorre que, na atividade vinhateira, nosso maior inimigo é o relógio – mais que o preconceito. Tudo é muito lento. Um vinhedo leva anos para ser construído, e outros anos para produzir. Os vinhos, se estruturados, podem levar de três a dez anos para revelar-se. As primeiras colheitas de Encruzilhada ocorreram por volta de 2004, portanto ainda é muito cedo para conhecermos a máxima expressão destes vinhos, e a produção pequena, bem como a falta de recursos financeiros da maioria dos produtores, impede que grandes estoques possam amadurecer com calma no silêncio das adegas subterrâneas, para a felicidade das gerações futuras. O Brasil começou tarde, infelizmente, e estamos condenados a beber vinhos jovens e adstringentes ainda por muitos anos. Mas se não começarmos o quanto antes a produzir alta qualidade e guardar estoques de vinhos para envelhecimento, mais vai demorar para usufruirmos as delícias dos vinhos maduros, enobrecidos pelo tempo.

OPS!: Para concluir, quais os vinhos preferidos do artista-vinhateiro Marco Danielle?

Meus vinhos preferidos são aqueles mais humanos e menos tecnológicos, menos "perfeitos"; portanto mais autênticos, com mais personalidade; feitos com as mãos e com a alma. Aqueles que ficam na memória por algum detalhe exclusivo, que não passam despercebidos. Aqueles mais telúricos, que refletem terra e fruta, preferencialmente sem madeira, certamente sem aditivos, e, se possível, sem conservantes. Para um consumo mais frequente devem ser delicados e leves, florais e frutados, mais secos e menos alcoólicos, mas podem também ser mais robustos e concentrados, de uvas supermaduras, em algumas ocasiões especiais – contanto que naturais, sempre. Não trocaria jamais um vinho tecnológico da moda, por caro que fosse ou "bom" que fosse, desses projetados para impressionar nos concursos e vender aos iniciados, por um vinho de autor natural, por mais humilde e singelo, se elaborado sem aditivos e com esmero. O gosto definitivamente não é, para mim, o critério decisivo sobre a qualidade de um vinho. A exemplo de como faço com o cinema, eu não degusto vinhos – degusto o conceito de seus autores. No cinema de autor, contudo, um diretor não é obrigado a agradar a todos, sempre, nem mesmo seus fãs mais assíduos. O importante é que o todo de sua obra seja coerente.

Respondendo mais objetivamente, no Brasil prefiro consumir os meus vinhos, pois infelizmente não conheço ninguém mais apresentando uma vinicultura com apelo estético e ao mesmo tempo orgânico – se não nos vinhedos, ao menos nos vinhos. Acabo de voltar do Chile, onde tive o prazer de constatar uma grande mudança no pefil do vinho chileno, felizmente na direção dos orgânicos; da delicadeza e da limitação da madeira – mesmos as vinícolas mais tradicionais têm sua linha orgânica. Os vinhos estão mais elegantes e menos pretos; de um vermelho mais translúcido. Os melhores que provei são os orgânicos do Alvaro Espinoza e do Errazuriz, que tem um Pinot Noir muito bom. A Emiliana está com um branco orgânico encantador, e a Perez Cruz também está com excelentes exemplares do novo perfil de vinho chileno. Infelizmente, a maioria destas coisas não chega ao Brasil, que anda sempre em passos mais lentos quando o assunto é vinho. Na Argentina gosto do Carmelo Patti e do Mauricio Lorca. Na França, todos os orgânicos e biodinâmicos: Viret e Milan na ala dos mais excêntricos, e entre os mais clássicos Leroy, Chapoutier, Marcel Deiss, Denis Mortet, Foucault. Os vinhos que mais me marcaram neste ano foram o Antiyal 1998 do Espinoza, o Croix de Bois 2003 do Chapoutier, o Chambertin Grand Cru 2004 do Trapet, o Quartz do Claude Coutois, o Clos Mogador 2000 do René Barbier e o Almaviva 1997. Como ainda não sou rico o bastante para consumir vinhos como estes, agradeço a generosidade do meu grande amigo Francis Fratellone, que fez questão de compartilhar alguns de seus vinhos comigo – incentivador que é do meu projeto.

Contudo, se não me restasse que um dia de vida e devesse escolher uma única garrafa para brindar esta aventura na terra, escolheria o Tormentas Premium 2007. Não porque seja melhor que qualquer outro, mas porque é um dos poucos vinhos premium no mundo feitos sem madeira e unicamente com uvas esmagadas; sem qualquer conservante – e pureza é a qualidade que mais me emociona em um vinho.

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Roberson Guimarães