As Raízes do Fim (Reflexões sobre A árvore da vida e Melancolia)

 
“A Árvore da Vida” (Terrence Malick, EUA, 2011),
“A Árvore da Vida” (Terrence Malick, EUA, 2011),
 
“A Árvore da Vida” (Terrence Malick, EUA, 2011)
 
 
 
 
 
[Impressões sobre “A Árvore da Vida” (T“A Árvore da Vida” (Terrence Malick, EUA, 2011)errence Malick, EUA, 2011), “2001: Uma Odisséia no Espaço” (Stanley Kubrick, 1968) “Koyaanisqatsi”  (Godfrey Reggio, EUA, 1982), “Melancholia” (DIN/EUA, Lars von Trier, 2011.)]

“Sempre houve inquietação dentro de mim. E sempre haverá.” Tree of Life, 2011
 
 
 
(Faça-se a luz.)

Quem me conhece (a fundo, no lugar dos ecos que se parecem com exagero, água gelada e musgo) sabe da minha paixão por livros e filmes. E sabe como isso me impregna, e como os percebo como experiências, possibilidades de reflexão. Entendo o mínimo saudável sobre cinema e literatura, o que é suficiente para sugerir dicas cheias de arrazoamentos. Sou sutil dentro da minha decadência: você talvez veja os desalinhos nas minhas fantasias, mas não encontrará o ponto de desmanche e descostura.

Aprendi a ter silêncio e sufoco desde cedo. Cedinho. Quando a madrugada mastigava minha saúde. Presenciar bons livros e filmes é exercício de silêncio que ajuda a tecer significados mais honestos. Edgar Morin chama os livros de “Experiências de vida.”

Não sou ensaísta. Ou cronista. Muito menos contista. Toda esta cor (Vê?) é pretensão. Ensaio uma decência medida entre os dedos apenas. E crônica em mim existe apenas a insuperável capacidade de não entender quase nada sobre tudo. Meus clichês e repetições são crônicos que não rendem boas crônicas.

Arrisco-me na escrita porque não há outro risco a correr. A não ser caminhar para o Adiante do outro. Quem não risca, não arrisca. Ou Vice, Verso. Não é?

Sei de filmes que carrego dentro dos olhos até hoje. Outro dia (anos vencidos) um personagem de um dos meus contos disse pra mim “Enxergo todas as coisas que te deixaram boa impressão quando você olha através de mim.” Foi a maneira mais lírica pela qual alguém se desviou da minha investida. Valeu a reflexão. 

Mas bons filmes são aqueles que despertam uma revelação de mim de minuto a minuto.

Quando experimentei “Koyaanisqatsi”, as palavras que tentaram descrevê-lo me engoliram. Fiquei perdido em todas as construções e cenas desvendadas. Um outro organismo feito de música (Philip Glass) e imagem acenou, torceu as mãos dentro do peito. Lembrei da minha primeira doença, e como aquilo sugeria derrota e recomeço. Ver toda a vida que aquele documentário sugeria foi como minha primeira doença mínima: A vida é do tamanho que acreditamos que ela possa parecer.

(O que é o tempo e a vida? Por dentro ou por fora?)

Sou o tipo de cara idiota que reflete sobre os pousos mansos do vento dentro da minha felicidade, sobre finais de tarde chuvosos como toques divinos para acalmar minha ânsia de viver um pouco mais até o dia seguinte. Filmes como os de Terrence Malick, como exemplo, me permitem esse movimento: dentro e fora.

Existem filmes que despertam grandezas. “A Árvore da Vida”, Koyaanisqatsi, Melancolia: um golpe sobre suas certezas sobre cinema. Poesias musicadas. 

Em “A Árvore da Vida” surge um movimento de alteridade. Um reconhecimento dos detalhes que são nossos quando só é possível começar em outros sujeitos. O amor, a fé, o perdão, o entendimento do que ainda pode ser nosso, se iniciam nas sutilezas de Malick. Não sei mesmo se Malick é sutil em algum dos seus planos. Porque existe em todos os planos uma inexaurível fonte de arrebatamento. Dá pra sentir a alma trincando; não como desastre, mas como libertação. Uma composição harmônica de atos mínimos e surpreendentemente grandiosos. A vida só se torna repetida porque acreditamos no destino como uma programação que não nos insere. A vida, na verdade, pode ser do tamanho que acreditamos que ela deve ser: ou cabe dentro do peito ou comporta no mundo ao redor.

Há o homem que tenta vagar dentro da dúvida: Sean Penn desaparece dentro da própria presença. Há o homem que se manifesta rígido na proximidade da calamidade: Brad Pitt encerra a contradição do homem bom que ama o próximo num plano em que o amor próprio pode ser questionado, quando nas vias da natureza, todos os animais sobrevivem sem entender de amor e espera.

O Texas (Alguém mais viu Wim Wenders soprando solidão nos ventos texanos?) em Malick é qualquer lugar que não procura resposta: só existe. O dedilhar do tempo dentro da música que sentimos lá no fundo. 

Existe uma voz narrando o silêncio. Uma busca ditando a inconformidade. Talvez seja o Deus de cada um, o amor que não pode acabar, que não aceita o fim.

É como se fosse exigido de nós algo maior que a própria capacidade da consciência para receber esse tipo de filme.

(Alguns considerarão um exagero. Eu nunca quis simplificar minhas experiências. Mantenho-me vivo pela resistência de todos os meus “dramas”, tentativas de não aceitar tudo como me é entregue.)

Não há linearidade. As linhas do poema de Malick não correm paralelas. Dão voltas num mesmo sentido. Existem quebras necessárias que não desorganizam a reflexão. Como na vida. Criamos a rotina e, com o tempo (o inventado também por nós), vamos caminhando para dentro dela numa letargia inescrupulosa.

Contemplam-se questões elevadas sobre o próprio fim (Será?) a partir dos diálogos que não acontecem. Os personagens se se questionam sobre o sentido de tudo, conversando com seus botões, mas despindo-se do desejo de permanecer intactos, desfiando a inquietude diante de respostas que não se apresentam e revelando a fragilidade da vida e do recomeço.

É um filme de contemplação. Uma trilha sonora que ajuda a reconstituir destroços de apocalipses íntimos; aqueles que sentimos diante de ameaças incomuns ao nosso pertencimento físico, corpóreo. O que ameaça o que você traz por dentro? O amor que talvez não comece amanhã? A morte que chega em poucos segundos de anos de expectativa e preparação? Quando um estalar de dedos não é suficiente para todas as palmas que você realiza esperando o tempo não passar.

As imagens vão se dando as mãos. E fluem. É aí que nos lembramos de “2001: Uma Odisséia no Espaço”, quando Kubrick nos entrega outra sinfonia. Não são filmes que se encaixam; apenas ajudam-se como complementos de reflexão. Como todos os abandonos românticos que vivemos desde sempre: ajudam-nos a entender de amor-próprio: pela reformulação de conceitos sobre o que se torna essencial numa vida tão curta. 

Em Malick é como se o homem buscasse a humanidade através do metafísico, mas fugindo dele próprio. Há amor e redenção. Passos extraordinários de amor e perda. 

As falhas que nos tornam humanos costumam ser colocadas para dentro, dentro do que não pode ser relevado em nós. O silêncio deixa de ser honestidade e adquire a potência de uma mentira deslavada. Reside em muitos a busca da bondade, ou a manutenção da aparência do que é bom, quando não sustentar certeza sobre que caminho seguir não nos torna errantes. Agarrar-se ao metafísico em busca de humanidade é uma opção, mas não salva o homem de qualquer desastre. É uma experiência, não uma solução para o fim. 

Os primeiros organismos do mundo se movimentam no questionamento da mãe que perdeu o filho de dezenove anos. O universo e os mares de fogo, ondas grossas de vermelho vivo começam a explodir. E depois o silêncio.  O universo em seu movimento de começo. O fim do filho não se explica pelo começo do mundo; talvez uma relação entre aceitação e mistério.

Existem filmes de enormidade, que se movem para dentro e para fora. São pequenas vitórias particulares que a nossa compreensão necessita investigar. Como a fé. Um pulo num abismo qualquer, um movimento que abraça o êxtase e a transcendência. Malick propõe: Ou você transborda, ou limita-se à simplicidade de filmes de entendimento pronto. Há uma explosão de vida nos personagens que precisa ser contida. A vida durará até amanhã realmente? Se ela durará assim, então posso esperar por tudo, alimentar rancores, deixar que algumas indecisões mordam minha falta de esperança?

A busca pela resposta (sobre como não perder todos que amamos e a própria existência) é através do que é sideral em nós. E abre-se uma pergunta maior dentro das perguntas originais. A fé brilha no salto, na entrega; a certeza apaga a busca.

Sussurro quando não consigo declarar em voz alta a necessidade. Sussurro é prática da alma. As vozes em Malick são sussurrantes. O silêncio que se enraíza, as folhas que dançam presas ao dedilhar do vento, revela que a natureza é um símbolo de poder. Não há outra meio de experimentar libertação a não ser contemplar? 

O espaço que mora na obra de Malick só poderá ser preenchido pelos sentidos do espectador. Um silêncio macio que abraça a inquietude de quem aprecia ou critica.

Tais filmes são uma sinfonia acalentadora de significados angustiados que a consciência absorve: o som transforma-se em luz, e as certezas se desfazem em questionamentos. São filmes-pergunta.

“Melancolia” é o fim de algo que já começou, mas não se sabe quando. Duas mulheres entendem o fim do mundo em perspectivas diferentes. Elas são dois planetas que se chocarão em breve, mas que ainda é um mistério. O casamento termina para as duas num desastre: duas desistências-limite. O apocalipse está guardado em cada uma delas. Quando vi “Melancolia”, lembre de Malick. O começo e o fim do mundo em “A Árvore da Vida” são imensos, mas inacreditavelmente discretos, como em “Melancolia”. Não é possível enxergar como tudo termina, pessoas gritando, caos. Não há desespero. Apenas a espera. (E como é a sua vida? É diferente disso?).

Todas as metáforas presentes não desnudam significados, acrescenta-os. Uma sobreposição, sem substituição, de sentidos. 

Você pode até não gostar, mas não sairá ileso. O golpe, mesmo tangente, causará uma ardência. Algo coagulará em você: A curiosidade para ver “Cinzas no Paraíso” (1978), “Além da Linha Vermelha” (1998), “Terra de Ninguém” (1973) e “O Novo Mundo” (2005), ou a preparação para desistir do dom que é pensar sobre tudo o que você desconhece.

(E fez-se a luz. E a consciência do fim.)

 
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Raimundo Neto