Loganálise By César Ebraico / Share 0 Tweet Continuação do artigo anterior, sobre a alta em psicanálise. III. Modo Sobrevivência Versus Modo Bem-Estar. Há dois grandes modos de operação psicológica: o Modo Sobrevivência e o Modo Bem-Estar. Descrevamo-los: Modo Sobrevivência – Modo de funcionar típico de coletividades ou indivíduos submetidos a altos níveis de medo. É um modus operandi politicamente centralizado, que valoriza a uniformidade de conduta, hostil, e que, dominado pelo macho, despreza o fraco e a mulher, exaltando, no aqui e agora, a indiferença à dor, enquanto desvaloriza o usufruto do prazer, tendendo, simultaneamente, à fugadição (= uso de qualquer tipo de recurso que evite o contato com a realidade) – comportamental, química ou ideológica – e ao bloqueio da livre transmissão das informações. Modo Bem-Estar – Modo de funcionar típico de situações em que a coletividade ou o indivíduo apresentam baixo nível de medo. É um modus operandi politicamente descentralizado, que respeita a diversidade de conduta, amistoso, e que, imparcial no reconhecimento dos valores específicos do homem e da mulher, protege o fraco, valorizando, no aqui e agora, o usufruto do prazer , sem, entretanto, permitir que ele seja empregado como elemento de fugadição, não se opondo, por fim, ao livre trânsito das informações. Ambos esses modi operandi, evidentemente, são legítimos, se aplicados às circunstâncias que objetivamente os requerem. Um exército existe para enfrentar situações de perigo e, portanto, compreensivelmente se organiza segundo o “modo sobrevivência”: neles, o exercício do poder é altamente hierarquizado, prezam-se o forte, a masculinidade, a uniformidade de conduta, a disposição hostil e a indiferença à dor, enquanto se desprezam o fraco, a feminilidade, a originalidade, a cordialidade e a sensibilidade à dor. Razoável? Evidentemente, se houver um perigo real, não fantasiado, a exigir enfrentamento. Reflitamos sobre isso empregando a seguinte estória, que me foi relatada como verdadeira pelo pai de um amigo meu: A estória do banquinho Um general à paisana passeia, numa bela tarde de domingo, pela orla do Rio. Passando por diante de não me lembra qual forte, acho que o do Leme, resolve sentar-se em um banquinho, externo às muralhas daquele. E assim o faz. Decorridos poucos instantes, um sentinela deixa sua guarita e se aproxima, advertindo-o: – O senhor não pode se sentar nesse banquinho! Surpreso, o general se identifica e pergunta: – Por quê? – Não sei, general, mas o senhor não pode sentar no banquinho! – responde o soldado, prestando continência. – Quem é o oficial-de-dia? – retruca o general. Quero falar com ele! Chegado o oficial, repete-se a indagação. – Gostaria de saber por que não posso me sentar nesse banquinho. A resposta não se altera: – Não sei – continência – general, mas nem o senhor nem ninguém pode sentar nesse banquinho! – Quem é o comandante do forte? – desespera o general. O comandante do forte era um ex-colega. Vai até ele. – Fulano, há quanto tempo! O que tem havido de você? Blá, blá, blá, blá, blá, blá… – É verdade! E de você, cara!? Blá, blá, blá, blá, blá, blá… – Fulano, me explica uma coisa. – Diga. – Por que não se pode sentar naquele banquinho em frente ao forte, logo perto da guarita. – E não se pode? – Não, não se pode. Achei estranho. Fora do forte. Domingo. Sem qualquer razão visível para um esquema especial de segurança… – Ordenança! – brada o comandante – Traga-me o responsável pela ordem de que não se pode sentar no banquinho que está fora do forte, próximo à guarita! – Pois não, general! Cinco minutos. Mais um cafezinho. Blá, blá, blá, blá… Chega o responsável, um sargento. Troca de continências. – Sargento – brada o comandante – por que não se pode sentar naquele banquinho?! A resposta merece participar de antologia: – Desculpe, comandante, isso foi há três meses, quando eu mandei pintar o banquinho!… Pois é. Razoável não poder sentar no banquinho? Claro: QUANDO O BANQUINHO AINDA ESTAVA COM A TINTA FRESCA, NÃO DEPOIS DE ELA HAVER SECADO! Mais uma estorinha, essa ocorrida com um paciente meu: A mão e a cabeça Marcos, em sua primeira semana de análise, chamou-se atenção para um fato a que eu não havia atribuído qualquer importância: – Você já notou – perguntou-me ele – que, quando me deito no divã, ponho as costas de minha mão sobre a cabeça? Ou melhor – continuou – eu não ponho minha mão sobre minha cabeça: ela vem para minha cabeça! Eu, aliás, quando me dou conta que isso aconteceu, insisto em tirá-la, mas, basta eu relaxar e, pum!, lá está ela de novo! Que inferno! De fato, eu havia percebido que meu paciente, ao se deitar, regularmente punha sua mão direita sobre a cabeça, mas não me passara a idéia de que se estivesse perturbando com isso. Marcos falou-me, também, sobre outro fato que o incomodava: tendo já perdido ambos os pais, podia, quando quisesse, re-evocar a figura paterna, mas não, a figura da mãe. Pensei o de sempre: conforme o paciente for vencendo seus bloqueios e libertando sua fala, memórias anteriormente inacessíveis passarão a ser acessadas e ele conseguirá lembrar-se da imagem materna. E assim foi. Com um detalhe. Quando recuperou a imagem de sua mãe, lembrou-se de ela fazendo algo a que freqüentemente se dedicava: socar-lhe a cabeça! E de que, nessas ocasiões, ele se protegia das pancadas maternas com um gesto idêntico ao que era compelido a fazer, até então sem saber por quê, sempre que se deitava com a cabeça próxima a mim, no divã da análise! A partir dessa lembrança, Marcos voltou a mandar em sua mão. Pois é. Razoável defender a cabeça com as mãos? Claro: QUANDO HÁ PERIGO DE ELA SER SOCADA! Pois bem. Tanto a estória do banquinho quanto à da mão na cabeça nos revelam o núcleo do tipo de disfunção psicológica para cuja cura – a idéia não é falar de “alta” em Psicanálise? – se volta especificamente esse tipo de tratamento. Esse núcleo merecidamente recebeu o nome de FIXAÇÃO. A disfuncionalidade da ordem de não se sentar no banquinho provinha da fixação de um grupo de militares – coletividades também ficam mentalmente doentes – a um momento em que a tinta com que se o pintara estava fresca, a da mão na cabeça da fixação de um indivíduo a um momento em que, menino, levava petelecos na cabeça… Mas se o objetivo do tratamento psicanalítico é, essencialmente, dissolver fixações, como saber que um indivíduo livrou-se das suas a ponto de falarmos de “alta”? No próximo capítulo.