TRAUMA E PEDOFILIA

O artigo conceitua trauma psicológico e expõe suas causas de forma a que seja possível, mais bem instrumentados teoricamente, decidir, em cada caso concreto, quais as relações entre pedofilia e trauma.

TRAUMA E PEDOFILIA

 
No que segue respondo conjuntamente a duas outras perguntas que me foram endereçadas a partir da leitura de meu artigo sobre pedofilia (os destaques são meus):
 
1. Meninas que vivem em sociedades que permitem o casamento com homens bem mais velhos e que são, de certa forma, estupradas com o consentimento da sociedade, ADQUIREM TRAUMA?
2. Existe DIFERENÇA ENTRE O TRAUMA sofrido pela vítima que é violentamente estuprada e aquela que é “seduzida” e consente no estupro?
 
Para que se possa responder adequadamente a essas duas perguntas, relativas a situações concretas, cumpre antes que se responda a duas perguntas de nível teórico, quais sejam:
 
(1) o que é um trauma psicológico? E
(2) como se o adquire?
 
O que é um trauma?
 
No linguajar científico, um trauma psicológico é uma “memória hipertônica”, ou seja, é uma memória que, quando ativada, produz uma quantidade de energia maior do que aquela passível de ser adequadamente manejada por nossa mente, gerando paralisação ou respostas inadequadas ao estímulo que a ativou. Exemplifico:
 
Um veterano de guerra que possui memórias hipertônicas dos estampidos de tiros e bombas ouvidos em campo de batalha pode ter ficar totalmente paralisado ou jogar-se no chão, em pânico (refiro-me a um caso real), ao ouvir, muito depois de acabada a guerra, o estouro provindo do cano de descarga de um automóvel.
Mais sutil é o caso em que um paciente com memórias hipertônicas de situações infantis que sobremaneira o irritavam descarrega a energia dessas memórias em uma rinite alérgica, ou seja, em uma irritação crônica das fossas nasais.
 
Como se adquire um trauma (= memória hipertônica)?
 
Para que isso ocorra são necessárias duas condições essenciais:
 
(1) A primeira condição é a de que a pessoa seja exposta ou
a. a um único fato que, por si só, produziu uma extrema quantidade de emoção (p.e., um estupro); ou
b. a situações não tão poderosamente geradoras de emoção como a relatada acima, mas repetidas por longo período (p.e., a repetição prolongada à abordagem sexual de um adulto por uma criança “seduzida” por ele);
(2) A segunda condição – e ela é indispensável – é a de que as experiências relatadas no item anterior sejam submetidas a repressão.
 
Para que se entenda corretamente o que significa essa segunda condição, indispensável para a formação de uma memória hipertônica (= trauma), é necessário que se conheça o significado da palavra “repressão” no linguajar da Psicanálise, o que dificilmente ocorre no ambiente leigo, o que torna a seguinte equação, sustentada por essa teoria
 
REPRESSÃO → MEMÓRIA HIPERTÔNICA (= TRAUMA) → NEUROSE
 
impossível de ser entendida e aproveitada pelo cidadão comum. Com efeito, no linguajar cotidiano, repressão é uma palavra que abrange os conceitos de “contenção” (= bloqueio do fazer) e de “recalque” (= bloqueio da possibilidade de expressão verbal).
Ora, para que a equação psicanalítica declinada acima SEJA VERDADEIRA, é necessário que seja entendida assim:
 
RECALQUE (= bloqueio da expressão verbal) → MEMÓRIA HIPERTÔNICA (= TRAUMA) → NEUROSE
 
Se isso for entendido, podemos responder de forma adequada as questões concretas que encabeçam este artigo. Repitamo-las:
 
1. Meninas que vivem em sociedades que permitem o casamento com homens bem mais velhos e que são, de certa forma, estupradas com o consentimento da sociedade, ADQUIREM TRAUMA?
 
É tão menos provável que isso ocorra, quanto mais a cultura em que elas estão inseridas NÃO AS RECALQUE, ou seja, permitam-lhes EXPRESSAR VERBALMENTE – ainda que apenas entre elas, mulheres – o impacto afetivo que tal experiência tem sobre elas e tão mais provável que isso ocorra, quanto mais lhes for obstaculizada tal expressão.
 
3. Existe DIFERENÇA ENTRE O TRAUMA sofrido pela vítima que é violentamente estuprada e aquela que é “seduzida” e consente no estupro?
 
Comecemos pela semelhança: num caso ou noutro, só haverá trauma se o ambiente da criança lhe obstar suficiente expressão verbal sobre o ocorrido.
A diferença é que, enquanto, no estupro, a experiência tem pouco ou nenhum elemento prazeroso – o que, em nossa sociedade, facilita a expressão verbal sobre ela – na criança “seduzida” há um elemento prazeroso – o que nossa sociedade dificilmente aceita, levando a criança a sentir-se culpada por ter sentido prazer e calar-se sobre ele (= recalque), o que leva à criação de uma memória hipertônica, ou seja, de um trauma. Tenho visto que até psicólogos tem dificuldade de dar escuta a esse elemento prazeroso, ficando, dessarte, impedidos de ajudar o paciente a superar seu trauma.
 
Bem, com este artigo, termino minha série de artigos sobre pedofilia, ficando, de qualquer forma à disposição de quaisquer pedidos de esclarecimentos adicionais.
 
Rio de Janeiro, 03 de março de 2009.
César Ebraico.

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