Jean Charles e nós – somos todos criminosos agora.

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Esse ano (2010), completou-se 9 anos do atentado terrorista de 11 de setembro nos Estados Unidos. Talvez esse fato – anos mais tarde, irá se tornar a grande ruptura de nossa era (contemporânea). Na perspectiva das mentalidades, muita coisa mudou. As mudanças mais evidentes, talvez sejam a questão do medo constante, da privacidade e da potencialização de todos como inimigos do estado. O Brasil embora não seja um país alvo do terrorismo internacional, sofreu com as conseqüências (diretas) do terror e da guerra contra ele. Essa conseqüência atende pelo nome de Jean Charles. Um brasileiro comum, mais um entre tantos que tentam uma melhoria de vida no exterior. A referencia a “um brasileiro comum”, é apenas para sublinhar a nossa familiaridade com o caso, entretanto, não faria diferença se Jean Charles fosse indiano, russo ou cazaque. Seria mais uma vida ceifada por uma “atitude paranóica de achar que se trata de uma conspiração internacional”, como disse Tariq Ramadan (1).  E foi justamente por isso que Jean Charles morreu – porque a mentalidade britânica e americana mudou. Jean Charles era só mais um no centro de Londres, mais um Paul, mais um Jhonny, mais um qualquer, porém todos perderam sua identidade, todos agora são potencialmente inimigos. Os modernos sistemas de identificação, os sensores e detectores de qualquer coisa, permitem que pessoas não ingressem em qualquer local com explosivos, bombas caseiras ou armas brancas. As pessoas passam por constrangimentos públicos, despindo-se para provar que não carregam nada, vitimas de uma paranóia que contamina inclusive máquinas modernas e computadores de ponta (que disparam alarmes falsos muitas vezes). “A tecnologia em si já permite acompanhar toda a vida de uma pessoa e segui-la em qualquer lugar, com precisão instantânea”, sentenciou Timothy Garton Ash (2)  – assistindo ao filme Jean Charles (Brasil, 2009) de Henrique Goldman – vê-se nitidamente o papel da tecnologia na identificação e na localização do suspeito. Após os atentados de 11 de setembro, tomamos contato com muito material a respeito das ações dos terroristas, das pretensiosas matérias intituladas “como pensam os terroristas”, mas algo que talvez tenha ficado claro, é que as organizações e grupos afins, trabalham com planejamento e estratégia de médio e longo prazo. Existem relatos que apontam para o ano de 1994 com ponto de partida para o atentado de 2001, justamente após tentativa malsucedida de explodir o estacionamento do mesmo WTC.

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Porém o maior indicador da paranóia americana – e por extensão britânica, encontra-se na fala de Marc A. Thiessen, acessor especial de Georg W. Bush: “no momento em que o novo presidente recebe seus informes de inteligência, alguns fatos precisam ficar claros: a Al-Qaeda está trabalhando ativamente para atacar de novo nosso país” (3). Ou seja, o governo trabalha com a ideia fixa de que podem ser atacados a qualquer momento. Essa nova mentalidade a que refiro, essa ideia de medo constante, inspirou o duo inglês Pet Shop Boys a escreverem o single “We´re All Criminals Now” (Astralwerks – Caroline, 2009) – inclusa também no disco “Love Etc.” –  “Somos todos criminosos agora” em português. Uma dura crítica – escondida por trás de uma batida contagiante, ao sistema de segurança e ao ethos britânico pós-atentados de 7 de julho de 2005. “Filmado no metrô, lendo notícias, logo depois andando pelas ruas” – Jean Charles tornou-se suspeito e nunca soube disso, teve sua vida vasculhada, seus passos monitorados, como num reality realmente verdadeiro. A letra prossegue ironizando: “hey, não me pergunte como, nós mudamos, somos todos criminosos agora” – antes criminosos eram quem cometiam crimes, hoje basta existir numa grande metrópole como Londres ou Nova York para tornar-se um. O filósofo Marshall Berman disse: “viver em Nova York é sentir que estamos em constantemente sob pressão” (4).  A canção sublinha bem esse sentimento, e o quão ruim é a vida por mais que materialmente seja boa, pois de certa forma não há uma liberdade total e irrestrita, uma parte dela agora pertence ao governo, pois você não é mais apenas um cidadão pagador de impostos, você pode ser o cara que irá explodir o metrô ou um ônibus e por em risco a segurança nacional. A letra ironiza novamente ao chamar de “procedimento de rotina”, o arsenal da paranóia do governo: “amostra de DNA” e “impressões digitais” – como se isso fosse revelar a face de um inimigo invisível. “Você pode provar quem você é?”, diz a letra, mas no caso de Jean Charles, isso só ocorreu a posteriori. E é essa a grande crítica que se faz a polícia britânica.

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Dizemos que isso só ocorre no Brasil (terceiro mundo), onde a polícia primeiro atira para depois saber quem era o individuo – mas no filme (segundo relatos coletados para elaborar o roteiro), ocorreu o mesmo. A polícia o identifica sentado no banco do metrô, lendo pacatamente seu jornal, um deles grita: “é ele”, e em seguida um grupo invade o vagão e sem qualquer procedimento de detenção (ou questionamento) atiram covardemente contra a vítima. “Os governos britânico e americano arrogam-se discretamente – em nome da segurança – o poder de monitorar tudo isso, inclusive todos os e-mails e chamados em celulares de quem quer que seja” (5) – e é óbvio que em nome daquilo que consideram como um “bem” ou contra um “mal” maior, esses governos iram violar quaisquer prerrogativas, sejam de liberdade, democracia, direitos humanos ou decisões multilaterais (e supranacionais) como a do conselho de segurança da ONU contra a invasão do Iraque em 2003. O que são cidadãos frente a nações? Ao contrário do que alguns disseram, a vida na Grã-Bretanha não seguiu normal após a morte de Jean Charles. Eles ainda vivem sob o signo do medo. “Não vivemos num blecaute, mas sinto que somos um alvo (…) – as tentativas dos terroristas costumam falhar. Por outro lado, a próxima pode funcionar” (6).  E é essa possibilidade do próximo ataque, que faz com que qualquer um vire o inimigo. Nunca se sabe quando vai acontecer, não se sabe de onde virá a explosão, não se sabe quem é o inimigo. O mundo mudou, Jean Charles está morto e somos todos inimigos agora – o que têm de admirável nesse mundo novo?
 

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Notas.

1. RAMADAN, Tariq. & RIBEIRO, Antônio. Chega de destruição. Veja. São Paulo, p. 14, fevereiro. 2006.

2. GARTON ASH, Timothy. Difícil mesmo é rever a privacidade. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 outubro. 2010. Caderno Aliás. p. J5.

3. THIESSEN, Marc A. Bush deixou EUA mais seguros. O Estado de São Paulo, São Paulo, 24 janeiro. 2009. Caderno Internacional. p. A14.

4. BERMAN, Marshall & ROSSETTI, Carolina. E o mundo em neon caiu na real. O Estado de São Paulo, São Paulo, 8 maio. 2010. Caderno Aliás. p. J4.

5. GARTON ASH, Timothy. Idem.

6. BERMAN, Marshall & ROSSETTI, Carolina. Idem.

 

 

 

About the author

Marlon Marques Da Silva

Humano, falho, cético e apenas tentando... Sou tio, fã de Engenheiros do Hawaii, torço pro Santos F.C. e não me iludo com políticos e religiosos e qualquer discurso de salvação. Estudei História, Filosofia, Arte, Política, Teologia e mais um monte de coisas. Tenho minha opinião e embora possa mudar, costumo ser aguerrido (muito) sobre ela e geralmente costumo ir na contra-mão da doxa.