Navegando no Cotidiano By Luciana Santa Rita / Share 0 Tweet “O amigo é a resposta aos teus desejos. Mas não o procures para matar o tempo! Procura-o sempre para as horas vivas. Porque ele deve preencher a tua necessidade, mas não o teu vazio”. (Gibran Khalil Gibran) Era uma tarde de sexta-feira que tinha tudo para ser hostil, absolutamente sem sentido, mas contrariamente, um homem se aproxima como um vórtice de energia, com uma camisa fora de moda e com calças largas. Semelhante a um amor que nunca morre, apresenta-se com o andar firme de um leão, mas com o mesmo olhar bondoso que um dia me conquistou. Já o vi em outras estações, mas nessa, ele se confunde com a própria primavera, surge como uma flor que desabrocha, enchendo os jardins e as florestas. Parece mais confiante, como o animal que acorda depois de dormir durante o período mais frio do inverno. Percebo em seu olhar a missão de tornar o meu sofrimento desnecessário. É o meu amigo que acaba de entrar na sala. Não o conheci na infância, mas sempre tive o melhor companheiro que alguém poderia ter durante o tempo certo. Foi com ele que compartilhei dúvidas, angústias, sonhos e risadas. Sempre recebi frases de fé, elogios e certezas quanto ao meu futuro. Durante algum tempo confrontei-o, mas nunca precisei acalmá-lo ou organizar o que estava desorganizado. Diplomei-me como amiga, sem merecimento. Hoje, resgato as suas intuições que são histórias reais. Naquela tarde, ele entoa, com sua voz, uma declaração perfeita de boa tarde. Logo me apresso para que ele se acomode da melhor maneira possível. Tento conter a ansiedade e me fixo permitindo que o momento atual exista. Penso no passado, permeado por seus ensinamentos em cenas que se repetem ao longo de ciclos, como se a vida nos permitisse encontros decisivos em laços repaginados. Sinto como se tivesse novamente 20 anos, não altivando a passagem do tempo, quanto metros nos separaram ou quantas palavras diminuíram a intensidade da intimidade que não mais avança na nossa história. Recupero o fôlego e penso que já tivemos uma amizade tão necessária quanto à lógica desnecessária do seu final. Guardo a inquietação e absorvo o sentimento de cuidado que ele transmite em seu olhar. Com as devidas proporções do sorriso que devolvo, deparo-me com a sensação de uma rua ou território que eu já conhecia. Diria com a sensação do endereço correto ou de um email enviado. Estamos ali pelas mesmas razões. Mas não sei bem como retomar de onde paramos. Prefiro, então, a superfície de uma estrada, revendo as curvas, as retas, os buracos, mas também as subidas, as descidas e o acostamento. E, em uma troca de olhares íntimos, alcanço a sincronia e a certeza do seu reflexo na música que começará a tocar. Agora ele se encontra próximo aos meus pensamentos e entende simetricamente o que acoberto e o que final do dia proporciona. Por um momento, ele quer me entender, mas não sabe como, pois inicia com a célebre frase: não sei por que insisto em você. Penso em laços repaginados, que vão e voltam apertados, finos, transparentes, coloridos. Assim, como tendências estereotipadas, sobrevivem aos interesses, submetendo a vontade de um laço emocional. Apenas laços que abrem presentes como ponto de partida. Como uma madelaine proustiana, não me separo do odor do passado enaltecido à quintessência. O tempo passa e um pouco de tudo aquilo que nós chamávamos de dúvida se transforma em verdade. Não intensifico a analogia, pois o encontro frente ao desencontro, não significa um contrato de amizade com validade ou sem dissolução. Naquele instante, não há pressão, não há cobrança, exagero ou asfixia, preserva-se a individualidade, com medida e tranquilidade. Não há a percepção se o laço é o enfeite para liquidar a dúvida ao presentear, mas apenas o efeito colateral das peças de puzzle. Não penso que possa em encarar o vazio a dois, mas aquele momento demostra uma compreensão da vida. Em seguida, ele resgata o tempo, saio do ato principal e enquadro-me como atriz coadjuvante, não em um novo cenário, mas com um olhar e atenção diferente. Ele pede a palavra. Escuto atentamente as mesmas frases do passado e entendo o seu posicionamento, embora perceba uma cena banal. Há sabedoria em suas palavras, mas como negar a sabedoria que não se transmite, quando é preciso que nós a descubramos na caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar. Após alguns cafés, estamos descontraídos e com outro modo de dizer, ele resgata o seguinte: ouça o que você está dizendo, esteja lá presente, como uma testemunha do que você quer para a sua vida. Não sei se ele acredita no que revelo sobre mim, mas ele assume a frase de Leonardo da Vinci, me repreende em segredo e parece estar disposto a continuar elogiar-me em público. Devagar, começo a me recuperar e já retomo o meu ar de vitória. Talvez ele sinta que precisará passar a vida refazendo os laços. Mas não cogita a desesperança. Oscar Wilde um dia escreveu: “Entre um homem e uma mulher não é possível haver amizade. É possível haver paixão, hostilidade, veneração, amor, mas amizade, não”. Todavia, o momento em que Wilde escreveu essa frase, os tempos eram outro e os princípios religiosos, éticos determinavam que a presença de um homem perante uma mulher culminava no sexo fora do casamento ou na supremacia da tirania do mais fraco sobre o mais forte. Para tanto, um homem poderia viver feliz com qualquer mulher desde que não a amasse, pois ela era apenas um elemento decorativo. Para o período era um argumento totalmente racional. Sem a possibilidade de escolha, não havia sentido as amizades intersexuais, determinado, assim, uma espécie de Código da Vinci dos desencontros entre gêneros. Na contemporaneidade, há claro uma tendência a estereótipos, mas não vejo muito utilidade em associações feitas sobre encontros premeditados e desde então tenho interferido na minha fé para acreditar em amizades repaginadas. Antes da nossa despedida, aproximo-me do meu amigo sem o deserto e agradeço a sua presença e por dizer a verdade quando preciso. E com confiança no que digo, eu já sei que ele estará por lá, insistindo na releitura, evitando o “não serve ou não quero mais para vida” ou convivendo com a folha borrada, e, enfim absorvendo o efeito da primavera para ser monotemática.