As borboletas e o desapego

Acabo de ler um livro, escrito por Jorge Luís Borges em 1949, mas reeditado em 2012 pela Companhia das Letras, “Aleph”, considerado uma das suas melhores obras. Destaco uma das frases que melhor acomoda à aceitação  das coisas perdidas entre  imagens da lembrança quando nem mais restam as palavras: “Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. Mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, é um encarcerado”.

 

Outra reflexão, em um segundo trecho, me infundiu em uma espécie de vertigem ao apego: “Essa vida é nova para ele, e às vezes atroz, mas já está em seu sangue, pois, assim como os homens de outras nações veneram e pressentem o mar, assim nós (também o homem que entretece estes símbolos) ansiamos pela planície interminável que ressoa sob os cascos”.

Lembro-me de uma estória que me foi contada quando criança sobre o motivo do elefante no circo ficar quieto e não se soltar da estaca cravada no solo, mesmo sendo grande e forte. O motivo era elementar, talvez irônico, pois com a força que tinha, poderia derrubar não só a estaca, mas o local inteiro. Todavia, simplesmente, aceitava o seu destino e não escapava porque tinha sido preso à estaca ainda muito pequeno. Talvez, tenha tentando se soltar quando pequeno, mas recuou, pois a estaca era muito pesada. E, assim, amarrado na estaca, aprendeu a esperar eternamente a hora do espetáculo.

 Entendo que, assim como o elefante, nos sobra pouca identidade ou desejo de uma vida porque o desapego só acontece contra a vontade e nada escapa a perfeição da lassidão da espera. Após a luta contra o presente, o que resta é a realidade. Diria uma batalha de desfechos e contradições dispensáveis.

 Sempre quando lembro a estória, penso em lembranças desnecessárias ou revoltas imperfeitas. Daquele momento em diante, o apego  é  oco e solitário, pois existe a restrição de ser além do que se é. Envolve-se com a simplicidade do que restou. Não existe, além dos fatos, independente do que se sente.

Diria que temos dificuldade a qualquer ato que remonte a desmontagem de uma árvore de natal ou mesmo a renegar a cegueira do amor fantasiado. Na maioria das vezes vivenciamos relações que não fazem mais sentido, mas ficamos lá como se tudo se bastasse em um balanço patrimonial, segurando as despesas do desentendimento, ampliando as receitas da paciência e esperando o patrimônio liquido da estabilidade. Só enxergamos  o lucro absolutamente necessário.

Somos tão renitentes a estridência inesperada do fim que cerramos os punhos ao sinal de qualquer aviso para limpar o guarda-roupa, andar a fila, procurar um novo emprego, trocar o carro ou virar a contramäo. Nos arrasamos em lágrimas como parodia à nossa teimosia  em seguir buscando a possibilidade do sempre, apenas, para esquecer-se de se despedir. Vive-se da memória da terra, do sonho, do objeto,  do amor,  da relação, da segurança, da estabilidade ou do emprego perdido e não se consegue encontrar o próprio destino. E como esquecendo Mario Quintana, não nos lembramos de nos bastar.

Por um lado, é como se estivéssemos colorindo a rotina e limitássemos qualquer possibilidade de enxergar as ondas inesperadas na vida para que seja plenamente possível, viver por um milésimo de segundo a mais. Por outro, a mania de achar que o outro é a única ou a última esperança, deixa longo o caminho para se acostumar com a ausência, com o luto e  com a reconstrução de um novo endereço.

Quando se apega a algo que só traz intensidade à injustiça das dores passadas, erra-se sem encontrar água, deixando o caminho ao arbítrio do cavalo de terceiro. Abre-se um labirinto com intrincadas e confusas circunstâncias, impossíveis de alcançar a melhor maneira de preencher a existência. Não se trata apenas de fechar ciclos, mas de sermos incapazes de recuperar o abrigo das cavernas. Aperfeiçomaos aos mitos.

Assim, perdem-se o fôlego e a paz quando não se desiste da fixação de parar o vento para manter o outono que ainda não aprendeu a esperar o inverno. Seria como ficar no topo do monte e evitar ceder espaço para noite, com contradições e apegos, não se abrindo ao diferente universo. Bastaria não cruzar as ruas que não deveriam ser mencionadas nos jornais de ontem, mas por estarmos cansados e despreparados, a dor caminha por uma rua de mão única.

E mesmo quando o amor já está  morto, permanece-se amando querumbins no lugar de nos rendermos a verdade de que somos o que temos. Esperamos a volta das borboletas, olhando com o desdém a mariposa, e depois com temor, como se o tempo não pudesse refazer o que perdemos. Como se a permanência fosse o nosso destino.

De forma verossímil por retratar a dualidade de todos nós, o apego nos inibe perante a busca da plenitude da mudança, descrita na frase da música do Gabriel o Pensador: “Muda, que quando a gente muda, o mundo muda com a gente.”

Somos alérgicos as novas possibilidades, sejam elas, emocionais, pessoais ou funcionais, desconfiamos do genérico da loratadina. Bastaria segurar as emoções do romantismo, não se prendendo aos fragmentos de um passado despedaçado, a uma máquina de escrever enferrujada, a um moletom manchado ou a uma caneta tinteiro. 

Imaginamos até  o novo, mas preferimos gestos mindlinianos, pois preferirmos sermos enganados pelo contrato sob judice a fechar o balanço, a aceitar o som estrondoso do não.

No final, acreditando em sina, destino ou benção da irrelevância ilusória, procuramos rever o filme com o intuito de notar sinais desapercebidos,  mas nem sempre voltamos à encruzilhada anterior ou desembocamos em outro olhar.

E nessa dificuldade de esperar o próximo instante, não saímos de casa, não deixamos as portas abertas  e a coisa vivida não figura como fantasma, mas espanta o futuro. Fazemos do drama o sentido, da propriedade a certeza e, por mais que se tente escapar da dúvida, deixamos o próximo passo sem imaginação.

Logo, o apego seria um cárcere profundo. No firmamento do desapego material ou emocional há mudança de pele, pois se descarta o acúmulo das batalhas ainda divididas, mesmo aquelas que não tiveram inscrição de hábito ou se tornaram fraudes.

Mas, podemos ser titulares do destino e transformar as lavras do coração em borboletas. E sempre lembrar que as borboletas duram no máximo 24 horas, tempo suficiente para o acasalamento de seus ovos, não se alimentando, sendo efêmeras, alias desapegadas. Como disse Rubem Alves: “Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses” .

O meu desejo é que  as nossas borboletas não se sintam pressionadas a voltar, desabrochando de um modo ou de outro, sem dar sobrevida à dor.

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Luciana Santa Rita