De princesa boa e madrasta má toda mulher carrega

“A floresta se fortalece com a sua fraqueza” (Frase do caçador para Branca de Neve no filme “Branca de Neve e o Caçador”).

No final de semana, após assistir ao filme, deparei-me com esse trecho que acomoda o universo feminino em um mundo de sonhos que nunca existiu para outro real. Como um serial killer, uma mulher na busca pela eterna beleza e imortalidade, cria razões aos seus delírios de poder perante a fraqueza alheia.

O filme apresenta uma bela Madrasta (Ravenna), interpretada por Charlize Theron, e uma Branca de Neve, vivida por Kristen Stewart, que representa uma princesa que não aspira um príncipe. E como um amiga que assitiu o filme comigo falou, a Branca de Neve optou pelo trabalho, findando o sonho infantil.

Sem uma opinião feminista mais generalizada, ou mesmo carregada de desencontros e expectativas frustradas do amor romântico, não me entendo com a berlinda do mito de que toda mulher é uma Branca de Neve no automático, que nasce como uma canção de ninar em que os padrões de comportamento estão especificamente determinados.

Acredito na madrasta e na princesa que há em nós. Não porque não conhecemos as nossas identidades, mas porque há um contraponto no ser humano que pode assumir identidades múltiplas em distintos momentos, construídas por meio de relações que estão em constante construção.

Nesse contexto, seria lógico crer com ceticismo na frase dos contos de fadas, “e foram felizes para sempre”, pois as mulheres na atualidade, quando optam pelos clichês desnecessários, optam pela certeza que nem sempre o príncipe é bem mais motivador que o sapo. Aliás, acreditam em pequenas felicidades a partir da força pessoal de Joana D’Arc. E como diz a Branca de Neve contemporânea: “Você não pode ter o meu coração”.

Por um lado, a imagem no espelho revela as cicatrizes que protegem os reinos provisórios, mesmo quando a escuridão continua plena, mas os olhos já se vêm habituados ao mal e ao bem que se pode fazer ao outro. Em um sentido metafórico, se assemelha a frase de Caim a Deus quando este perguntou por Abel: “Seria eu o guarda do meu irmão”.

Por outro, estar em uma carroça com dois cavalos pode levar a destinos diferentes ao se aventurar em estórias que nos créditos trocam a receita do final feliz pelo final real. Às vezes há um caçador que é a parte mais real. Às vezes a realização feminina estar em suas metas profissionais ao contrário da ideia de que só o amor faz sentido à medida que um reino, encantado ou não, precisa funcionar, independente de príncipes, princesas, sapos, madrastas pagarem a conta.

Li em certa ocasião que a verdadeira tragédia não é a maldade dos maus, mas a futilidade das melhores intenções dos bons. Nesse sentido, a dificuldade em controlar as nossas insurgências e jogar a toalha na irritação, seja pela dor do amor incompleto, do trânsito irritante, da doença aparente, do trabalho infrutífero, da falta de grana, da TPM, da falta da DR, dos sonhos inacabados, podem proporcionar essa mutação para madrasta má.

Essa identidade continuaria no tempo presente, caminhando camuflada por uma máscara de princesa gentil, mas dependendo do que se passa, deixaria o pior do que há em nós se revelar, seja pela desconfiança, ciúme, insegurança, inveja, abandono ou perda, renegando a autenticidade do que é lavado pelo tempo.

Todavia, mais sozinha do que nunca, a floresta negra cabe como uma luva no papel de vítima moderna. Afinal, viramos neuróticas, ansiosas, inconstantes, irritadas, descontroladas a um simples motoqueiro que quebra o retrovisor do nosso carro.

Tempestivas a uma resposta que não chega à caixa de email. Impacientes com a luz que insiste em falhar ao término de um relatório de trabalho. Mas, mesmo, assim, continuamos com vida, com pressa, em movimento, apesar das intrigas, sem se paralisar, sem se perder em tantas facetas humanas.

Nesse meio, até a visão dos pratos que amontoam no final de semana, nos leva a desejar a volta da escravidão, e, assim, nos debelamos com a mesquinharia dos nossos atos, e sem respostas, contracenamos com o nosso eu negativo que não merece perdão. Todavia, recriminar a madrasta é reprimir o que tentamos esconder em nós mesmos.

Diante desse contexto, a dualidade é a realidade e não sabemos se somos tão diferentes ou tão parecidos com a madrasta má. Diria que só a chuva de calmantes e poções milagrosas, permitidas pela psiquiatra nos leva à confissão da Fiona do Shrek que mora em nós.

De certa maneira o desejo da imortalidade sempre esteve lá, e, parodiando o conto sobre a “Terra dos Imortais” de Jorge Luís Borges, a eternidade é a amarga companhia dos imortais. No conto, a terra dos imortais era desolada e as pessoas andavam sem pressa e rumo.

Não é fácil se aventurar sozinha pela floresta negra, mas à deriva do abismo, calçamos as botas e esquecemos as lições pela insistente carência. Nesse caminho tortuoso, nossas mágoas, mesmo dizendo a respeito de nos mesmos, nos levam a um naufrágio existencial.

Para ir em frente, a mulher pode virar uma imperatriz soberana, pois como diz Pena (2004) na Teoria do Fractais, a identidade é descentrada e fragmentada e com lugar para contradições e esquizofrenias.

Ultrapassando a soleira da floresta negra, pela nossa natureza humana e na busca do nosso lugar no reino, como coloca o Batman – O Cavaleiro das Trevas, “Ou você morre herói, ou vive o suficiente para se tornar o vilão.”

Este é o reino que fica entre máscaras, mortos e feridos.

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Luciana Santa Rita